As letras começaram a sair-lhe na língua de Camões na mesma altura em que ensaiava o regresso da banda que o empurrou para a fama, em 2013, quando Sofia Lisboa, depois de superar uma leucemia grave, quis celebrar um dos momentos mais ricos da sua vida e, com isso, angariar dinheiro para o Instituto Português de Oncologia. Como David Fonseca é, lá está, “pouco nostálgico”, revisitar canções escritas há mais de 15 anos deixou-o “em pânico” e fez um pacto consigo próprio: nos três primeiros dias da semana tocava o passado nos ensaios com Sofia, Rui Costa e Tozé Pedrosa; nos restantes isolava-se na casa que pertencera aos avós, em Peniche, para projetar um futuro musical.
Tomado por um bloqueio inicial, conseguiu contrariar os obstáculos com uma máquina de escrever comprada no OLX, com o ritmo e o som tão próprios do objeto a servir de impulso à escrita. Depois de encher dezenas de folhas de papel com histórias, contos, ideias soltas, poemas na sua língua materna, um dia, “às quatro da manhã”, o desinibidor chegou em forma de frase: ‘não vás, não deixes o momento só levar a luz do teu lugar’. Gravou-a de imediato e foi invadido por um arrepio revelador. “Houve uma emoção qualquer que se atravessou”, diz. No dia seguinte, quando voltou a ouvir a maquete, não teve dúvidas sobre qual o caminho a seguir. ‘Não dês só para tirar’ foi a primeira canção criada para Futuro Eu, seguidas por outras “40, 20 das quais absoluta porcaria”.
Por estarmos tão habituados a ouvir David Fonseca cantar em inglês, a sua interpretação em português causa alguma estranheza nos primeiros temas do álbum, especialmente porque soa mais duro. O músico sabe que está mais exposto assim, mas garante que cantar em português não muda assim tanto. “Essas canções é que pedem aquela entoação”, comenta. A par disso, os julgamentos não o assustam. Nestes 20 anos de carreira construiu um dos mais sólidos clubes de fãs, concretizou quase todas as ideias artísticas que concebeu sem se dar mal, é encarado com respeito tanto pelo público indie como pelo mainstream. Daí não haver qualquer necessidade de suspirar pelo passado. Bem pelo contrário. É com orgulho que enaltece o seu trajeto ao longo destas duas décadas, como o faz nas dez fotografias que escolheu do seu arquivo pessoal para à Tabu.
Postal de Natal (2014)
“Todos os Natais faço um postal para os fãs e têm vindo a ficar cada vez mais complexos. Este foi o do ano passado e vesti-me de árvore de Natal porque cantei o ‘Christmas Tree’. Este ano ainda não sei o que vou fazer, mas isto tem sido uma loucura todos os anos porque já sou pressionado pelos fãs que, quando chega novembro, começam logo a perguntar quando faço o vídeo de Natal. Comecei a fazer há dez anos, já cantei os clássicos todos e acho que nesta década só falhei uma vez”
Digressão ‘U Know Who I Am’ (2010)
“Gosto muito desta foto porque foi um espetáculo que fiz a partir de uma ideia meio louca que acabou numa tournée de 30 datas. Foi a confirmação de que uma ideia muito tola pode resultar numa coisa tão grande. Quando fiz o single ‘U Know Who I Am’ resolvi fazer um espetáculozinho de Natal, no Jardim de Inverno do São Luiz, só à guitarra. Comecei a ensaiar e isto começou a expandir, ao ponto de achar uma boa ideia fazer um espetáculo onde tocasse todos os instrumentos em cima do palco. Marcamos duas sessões, mas acabei por fazer oito só em Lisboa, depois fiz mais quatro no Porto, mais 30 no país todo. E ainda fui a Madrid e Barcelona”
Em palco como astronauta (2008)
“Vem na sequência do ‘Rocket Man’. Esta fotografia foi tirada no Sudoeste e nesta digressão comecei a aparecer vestido de astronauta em todos os espetáculos. Era estranho porque não é muito comum em Portugal haver este tipo de encenação em palco. Já vesti este fato em diversas ocasiões e o último single que lançamos – ‘Chama-me que eu vou’ – ainda apareço vestido de astronauta no vídeo porque quis fazer uma espécie de apanhado dos últimos anos de carreira. Decidi aparecer assim porque, a certa altura, comecei a perceber que os espetáculos tinham que ser algo mais do que a própria música. Queria fazer mais coisas além de luzes a apagar e acender, mas era demasiado tímido para tal. Lentamente comecei a sair dessa casca e a fazer estas coisas que, no meu entender, tornam o espetáculo mais interessante”
Videoclip ‘Rocket Man’ (2007)
“Nessa foto estou com a maquilhadora, o meu manager e o Paulo Segadães, o diretor de fotografia do vídeo. Como não tínhamos grande orçamento para fazer um vídeo, porque tínhamos gasto tudo no anterior, tive esta ideia, que inicialmente parecia absurda, mas acabou por se tornar um dos meus vídeos mais icónicos. É todo ao contrário e, no fim, aparece uma drag queen lá por baixo. Este vídeo é muito marcante porque foi a primeira vez que fica notório que quero abordar outras ideias menos convencionais e mais da perceção do que é um artista. A partir desta altura, comecei a fazer vídeos mais de performance e isso acabou por saltar para o palco e para a minha vida artística, como esta ideia agora de ir a casa dos fãs entregar o novo disco em mãos”
Negar o ‘poster boy’ (2000)
“Gosto muito desta fotografia por várias razões e uma delas é por mostrar que tinha, desde cedo, os pés bem assentes na terra. Tinha 27 anos e fiz esta imagem em reação ao facto de ter sentido o mainstream como algo perigoso. Em 1998, quando vendemos aqueles discos todos, havia uma tentação muito grande de me tratarem como uma espécie de poster boy e eu tinha muita dificuldade em aceitar isso. Então, tive a ideia de fazer esta imagem que, no fundo, queria dizer ‘tomem atenção às canções e não a mim’. Quem me maquilhou foi a irmã da Sofia [Lisboa], que era maquilhadora profissional, e fizemos esta foto uma tarde em minha casa”
Humanos (2005)
“É um dos momentos que mais gostei de protagonizar. Os Humanos foi uma surpresa na minha vida e nunca nos passou pela cabeça que viesse a ser um projeto tão transversal. Variações era uma referência e quando recebi um telefonema, por volta das duas da manhã, a convidarem-me para tocar repertório do Variações nunca editado com a Manuela Azevedo e o Camané aceitei logo sem ouvir uma única música”
Silence 4 (1996)
“Esta polaroid é uma das primeiras fotografias que tirámos juntos. Gosto muito das fotos de quando as coisas ainda não aconteceram. Aqui éramos todos muito inocentes, eu devo ter uns 22, 23 anos. Acho que a banda resultou porque havia, de facto, uma magia qualquer entre nós. Ainda hoje uma das coisas que mais me intriga nos Silence 4 é como é que as canções tinham um ar tão simples e resultavam tão bem. Acho que tinha a ver com essa simplicidade com que nós os quatro abordávamos as canções”
Estúdio (1998)
“Esta foto é muito emblemática porque foi a primeira vez que entrei num estúdio profissional. E logo com o Mário Barreiros como produtor e a colaboração do Sérgio Godinho num tema. Nesta altura os Silence 4 eram uma banda totalmente amadora, que ambicionava fazer discos, mas ter o Godinho logo no primeiro disco estava longe da nossa imaginação. Foi com muitos nervos, mas também orgulho, que gravamos com esta lenda viva da música portuguesa”
Coliseu dos Recreios (2010)
“Esta imagem é de um espetáculo no Coliseu. Por norma, nos Coliseus faço alguma coisa que depois estendo ao resto da digressão. Nesta digressão, a certa altura do concerto, personificava uma espécie de pugilista que aparecia no palco com os olhos pintados de preto (numa alusão ao vídeo de ‘Stop 4 a minute’, no qual aparecia com esta tinta nos olhos, a lembrar o Blade Runner), depois tornava-me DJ e aquilo transformava-se numa pista de dança. Era assim uma coisa meio louca. Escolhi esta foto porque mostra uma das coisas mais estranhas que já fiz no palco até hoje”
Rock in Rio Lisboa (2012)
“Estou com a Mallu [Magalhães] e estamos muito divertidos, apesar deste ter sido um dia difícil para ela porque tinha acabado de descer do avião e só tivemos este dia de ensaios antes do espetáculo. Não nos conhecíamos, mas acho que correu muito bem e, depois, ela acabou por participar no ‘Seasons’. O bom destas colaborações, com pessoas que nem conhecemos, é sairmos do nosso lugar de conforto. Com quem quer que seja, temos de nos adaptar e perceber como a colaboração pode existir, sem nunca perdermos o nosso próprio universo”