DocLisboa: Camuflar ficção e real

Cada vez mais o cinema documental não se fecha numa definição. A tendência não é recente, diz o programador do DocLisboa Adriano Smaldone, recordando o trabalho de Robert Flaherty, considerado um dos pais do cinema documental, cuja obra, nos anos de 1920, procurou sempre diluir as fronteiras entre realidade e ficção. Assim, mais do que…

Este é o ponto de partida para a edição deste ano do DocLisboa, que começou quinta-feira e decorre até 1 de novembro: questionar o documental vincando a ideia de que os filmes são «cinema e não apenas documentário», como reforça Miguel Ribeiro, outro dos responsáveis pela seleção dos filmes apresentados no festival. «No seu todo, a programação deste ano procura mostrar de que forma o cinema documental se expande e é contaminado por outras narrativas sem nunca perder o olhar pelo real».

Nada melhor, então, do que abrir a mostra com um filme dotado dessa despreocupação quanto à sua categoria. Bella e Perduta, do italiano Pietro Marcello (apresentado quinta-feira e que repete domingo, no Cinema Ideal) começou por ser um filme sobre a história, verídica, de um camponês que procurava salvar um palácio rural da ruína. A morte do protagonista durante a rodagem acabou por obrigar o realizador a reinventar o filme, dotando a obra de uma carga poética imprevista. Já, por exemplo, BalikBayan, do filipino Kidlat Tahimik, «é uma epopeia sobre a representação da história das Filipinas desde Vasco da Gama até aos dias de hoje»; e 88:88, a estreia do canadiano Isaiah Medina, «um filme inclassificável», que traz para o ecrã o imediatismo da comunicação atual, num «imaginário cinematográfico inovador».

Como aconteceu nas duas edições anteriores, há uma obra portuguesa em competição na secção mais importante do festival. E, tal como os títulos já mencionados, também A Glória de Fazer Cinema em Portugal, de Manuel Mozos, é um híbrido no que diz respeito à construção narrativa. Depois da descoberta de bobinas antigas na posse de um colecionador, Mozos inventa um passado cinéfilo para o escritor José Régio, que há mais de 80 anos revelou o desejo de se tornar produtor e cineasta. «É um documentário sobre o que podia ter sido…», diz Adriano Smaldone.

Bella e Perduta, BalikBayan, 88:88 e A Glória de Fazer Cinema em Portugal são quatro dos 21 filmes escolhidos para a competição internacional, secção que este ano sofreu algumas alterações, deixando (tal como a nacional) de estar arrumada entre longas e curtas-metragens. «A ideia é olhar para o cinema sem distinções, acreditando que a metragem escolhida pelo realizador é a que faz sentido para cada filme», comenta Miguel Ribeiro, salientando que em termos de troféus não houve cortes. Assim, há dois prémios monetários em cada uma das competições (de melhor filme e especial do júri) e, uma vez que a secção investigação desapareceu, esse valor pode ser agora entregue a qualquer um dos filmes em competição.

Competição nacional «fortíssima»

Perante a crónica falta de apoios ao cinema em Portugal, as recompensas financeiras podem ser motivadoras para uma candidatura ao DocLisboa, mas o que a equipa do festival constata é que, de ano para ano, são cada vez menos os filmes nacionais propostos. Ainda assim, destacam os programadores, a competição nacional deste ano «é fortíssima», com alguns dos «melhores filmes portugueses» já vistos na história do Doc. «Todos os filmes são ótimos», garante Smaldone.

Um dos mais aguardados é o de João Canijo e Anabela Moreira, Portugal – Um Dia de Cada Vez, retrato de pessoas e de lugares que resulta de um ano de viagens da atriz por aldeias do interior de Portugal. A versão de 155 minutos apresentada no festival (a mesma que terá estreia comercial depois do festival, a 5 de novembro) é parte de uma série para TV de 12 episódios.

Como é hábito no Doc, a atualidade política e social não é esquecida. Este ano, está presente nas sessões dedicadas à Grécia, como Miguel Ribeiro explica, um «ciclo com muitos filmes históricos que permitem traçar o posicionamento do país durante cerca de sete décadas» e na secção cinema de urgência, «com sessões dedicadas a três temas: segregação social, refugiados e direito à habitação».

Haverá ainda uma retrospetiva dedicada ao sérvio Želimir Žilnik – cineasta cuja obra nasce com a revolta estudantil na Checoslováquia, depois da invasão soviética de 1968, cruza-se com a censura na Jugoslávia e acompanha a reconfiguração territorial do Leste – e a categoria Heart Beat, dedicada à música, regressa com, entre outros, filmes sobre Celeste Rodrigues (irmã de Amália), Daft Punk, Frank Zappa, Ornette Coleman e Robert Wyatt.

Em termos de arrumação, o programa apresenta agora a etiqueta de auxílio ‘Recomendado a Famílias’ de forma a ajudar o espetador a escolher o que pode ver num festival que exibe cerca de 200 filmes, 43 dos quais em estreia mundial, espalhados por Culturgest, S. Jorge, Cinemateca, Ideal e os City (Alvalade e Campo Pequeno). Duas dessas estreias são Acorda, Leviatã, de Carlos Conceição, e Raimundo, de Paulo Abreu, filmes que Smaldone classifica «quase de ficção científica». Mais uma associação estranha ao cinema documental. «Revela a grande
liberdade que os realizadores estão a aplicar à questão do género. Jogar nestes limites é um
interesse transversal aos filmes do festival, especialmente porque eles nunca entregam uma verdade. São interpretações, possibilidades para se criar diálogo».

alexandra.ho@sol.pt