Passei todo o dia de quarta-feira – quando devia estar a escrever este texto – aguardando pela comunicação de Cavaco Silva com a sua decisão final sobre quem iria formar o próximo Governo. Nada aconteceu, como se sabe. E só na madrugada de quinta-feira decidi que a minha espera não fazia sentido – e que só a mantivera por mero escrúpulo jornalístico, dentro dos prazos de produção deste jornal.
A verdade é que, fosse qual fosse a decisão de Cavaco, tudo estava antecipadamente decidido. Godot era apenas um fantasma e Cavaco acabava por confundir-se com ele, quer decidisse, como parecia absolutamente previsível, nomear o vencedor das eleições como primeiro-ministro, quer arriscasse apostar na hipótese oposta: a de indigitar para a mesma função o líder do segundo partido mais votado, depois de concluir que só perderia tempo ao avançar com a primeira hipótese.
Arrisco, pois, em que Cavaco decidiu nomear Passos Coelho, embora saiba que provavelmente irá ter de conformar-se com a designação de Costa, perante a anunciada rejeição do programa do Governo da PàF pela atual maioria parlamentar.
Mas, aí, Cavaco já terá lavado as mãos de responsabilidades e nem lhe restará sequer o papel do fantasmagórico Godot, uma vez que a decisão final não lhe competirá a ele mas à maioria dos deputados.
Os poderes presidenciais esgotaram-se definitivamente pelas razões que são conhecidas, depois da próxima (ou já vigente) e também derradeira decisão de Cavaco Silva. Resta, claro, uma outra alternativa que seria também tão absurda como o enredo da peça de Beckett: a de que Cavaco, invocando motivos político-ideológicos, decidisse manter o Governo PàF em gestão até às calendas da próxima eleição presidencial. Mas é uma hipótese que, segundo praticamente todas as opiniões – mesmo as mais radicais –, poderia ter consequências graves para a governabilidade do país até ao período em que o próximo Presidente estivesse em condições de convocar novas eleições legislativas.
De qualquer modo, Cavaco teve a vida facilitada. Apesar das declarações de António Costa, Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa após as últimas audições em Belém – coincidindo todas elas na perda de tempo que representaria a designação de Passos Coelho como futuro líder do Governo –, o facto é que até esse momento não existia um compromisso formal, sólido e consistente entre as forças de esquerda para garantir uma alternativa de Governo estável para os próximos anos (nem para os próximos meses).
Ao fim de duas semanas, a vontade política dos putativos aliados de esquerda não estava completamente esclarecida. A não ser que lhes restasse um prazo suplementar para apurarem esse compromisso – o que, ironicamente, poderia ser facultado pela designação de Passos Coelho como futuro primeiro-ministro. Ou seja, a decisão de Cavaco nesse sentido – e a previsível derrota parlamentar da coligação – tenderia a dar mais tempo aos partidos de esquerda para se entenderem de forma mais consequente. A ironia das coisas não tem fim.
Com os dados disponíveis, só posso repetir o que já disse em crónicas anteriores: a primeira escolha de Cavaco deve ser a de indicar o vencedor das eleições – embora sem maioria absoluta – para formar o próximo Governo. Mas, sendo aparentemente inviável que esse Governo passe no Parlamento, a opção que de facto resta é a existência de uma maioria de esquerda como base de uma alternativa governativa.
Evidentemente, nada garante ainda a solidez dessa alternativa – não só devido às profundas contradições interpartidárias na esquerda mas também se tivermos em conta as divisões internas no PS e as dúvidas sobre uma disciplina de voto socialista no momento da verdade. Sabe-se que a fronteira entre as maiorias (de esquerda e direita) é efetivamente muito ténue e basta uma mini-rebelião para fazê-la desaparecer.
O que quer que Cavaco tenha decidido já depois de este texto estar escrito não exclui uma evidência elementar: o seu ilusório papel de Godot do regime acabará por desvanecer-se no Parlamento tal como o fantasma de Beckett. Mas continuará a perpassar por tudo isto um perfume de teatro do absurdo.