Cavaco ganhou quatro eleições com mais de 50% dos votos: duas para primeiro-ministro e duas (à primeira volta) para Presidente da República.
É obra!
Mas isso não lhe dá o dom da infalibilidade.
Desde a entrada da troika que Cavaco vinha apelando a um entendimento entre o PSD e o PS para garantir o cumprimento do Programa.
E, depois da saída de Vítor Gaspar e da demissão ‘irrevogável’ de Paulo Portas, obrigou os dois partidos a sentarem-se à mesa das negociações no sentido de assegurar a governabilidade no período pós-troika, oferecendo em troca a antecipação das legislativas.
Achei isso um erro e escrevi-o.
Parecia-me muito difícil um entendimento entre dois partidos cujo ADN é serem adversários e alternarem no poder.
O acordo falhou, como era previsível, e Cavaco cedeu – mas não desistiu.
E desde aí veio repetindo que o Governo saído destas eleições tinha de ter uma base parlamentar estável (leia-se, maioritária).
É óbvio que na cabeça de Cavaco estava uma coligação entre o PSD e o PS, com ou sem o CDS; ou, no mínimo, um acordo parlamentar entre eles, independentemente de qual ganhasse as eleições.
O que Cavaco nunca pensou foi que essa exigência pudesse ser usada para justificar a entrada do PCP e do BE na área do poder.
Só depois das eleições é que percebeu o que se estava a preparar.
Daí a sua intervenção pública no dia 6 de outubro, falando no respeito pelos compromissos internacionais, designadamente a NATO e a União Europeia – numa aparente tentativa de afastar o PCP e o BE de uma plataforma governativa.
Só que António Costa não se comoveu – e começou a tentar um acordo à esquerda, que pela primeira vez em 40 anos parecia ser possível.
E porquê?
Por o PCP e o BE terem mudado de estratégia?
Não: um partido comunista e um partido de extrema-esquerda não mudam de estratégia em 24 horas.
O que se passou foi exatamente o contrário: o PCP e o BE viram aí uma oportunidade para mudarem a estratégia do país.
Viram que, se viabilizassem um Governo do PS, este ficaria nas mãos deles.
Não seria possível aprovar nenhuma lei sem os votos de comunistas e bloquistas.
Dito de outro modo, o Governo de Portugal estaria refém da vontade simultânea do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda.
Por isso, Jerónimo de Sousa disse desde o primeiro minuto – manhosamente – que «nada impedirá o PS de formar Governo».
Pudera!
A partir do momento em que isso aconteça, o PCP poderá reprovar qualquer lei (pois os deputados do PS e do Bloco juntos não chegam para as aprovar).
Jerónimo não é parvo.
O PCP, que andou todos estes anos a votar para o boneco, ficará com o poder de ‘veto’ sobre todas as iniciativas governamentais.
E com o Bloco de Esquerda passar-se-á o mesmo.
O PCP e o Bloco assumem-se hoje como cavalos de Troia.
Oferecem ao PS os seus votos – para amanhã, dentro do Governo, minarem o poder.
Alguém está a ver Jerónimo e Catarina a aprovarem cortes na despesa pública para manter o défice abaixo de 3%?
Ou a nunca mais falarem na renegociação da dívida?
Ou a calarem durante quatro anos críticas ao euro, à Comissão Europeia, ao FMI, à Alemanha, etc., para não assustarem os credores?
Alguém acredita nisso?
Curiosamente, PS, PCP e BE, que tanto atacaram Cavaco Silva, invocam agora a todo o momento a exigência feita por Cavaco de uma maioria.
Oferecem-se para formar um Governo maioritário e estável, «conforme pediu o senhor Presidente da República».
Que hipocrisia!
Os lobos subitamente transformaram-se em cordeiros.
Fazem de Cavaco parvo.
Acabo como comecei: quando colocou a exigência de uma maioria, para sair de Belém com uma solução de Governo estável, nunca passou pela cabeça de Cavaco que a exigência poderia virar-se contra ele.
Que isso fosse utilizado pela extrema-esquerda para reivindicar o direito a governar.
Claro que, em qualquer caso, António Costa poderia agir como agiu.
Mas, pelo menos, não tinha o álibi de estar a corresponder à vontade do Presidente.
Queimar etapas
António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins disseram que o Presidente da República não devia perder tempo e, na medida em que um Governo de Passos Coelho será chumbado, deveria indigitar já o líder do PS como primeiro-ministro.
Ora, Cavaco não podia, muito simplesmente, fazer isso.
Os líderes não são constitucionalmente proprietários dos votos dos deputados.
Se fosse assim, nem precisaria de haver Parlamento: em todas as situações, Costa usava os seus 86 votos, o BE os seus 19, etc., e os deputados não seriam precisos para nada.
À face da lei, cada deputado vale por si – e tem o direito de se exprimir livremente no Parlamento.
O Presidente da República não pode queimar etapas, antecipando a vontade dos deputados antes de eles votarem.
Assim, Cavaco tinha sempre de convidar o líder do partido vencedor das eleições a formar Governo – e o Parlamento dirá de sua justiça.
Isto é elementar – e não percebo como Costa, Jerónimo e Catarina cometeram um erro tão infantil.
Ou eles acham que os seus deputados são cães amestrados, sem direito a manifestarem a sua opinião?
A esquerda radical no poder?
No breve discurso de 6 de outubro em que deixou claras as suas condições, Cavaco Silva falou da necessidade de respeitar os compromissos com a NATO e a União Europeia, e exigiu um Governo «estável e duradouro» e uma solução «consistente».
Ora, no caso de o Governo de Passos Coelho chumbar no Parlamento, Cavaco terá de voltar a ouvir os partidos e ver se existe uma alternativa que dê essas garantias de estabilidade, consistência e cumprimento dos compromissos internacionais.
E esse juízo caberá só a ele.
E ontem Cavaco deixou claro que não considera o PCP e o BE como partidos capazes de garantir os compromissos internacionais do país, na Europa e no mundo. Assim, restar-lhe-á manter Passos Coelho em gestão até se encontrar outra solução.
Dada a ainda frágil situação do país, há um aspeto fundamental a ter em conta no raciocínio presidencial: a avaliação que as instituições internacionais farão sobre a situação portuguesa.
Que solução dará maiores garantias aos parceiros internacionais e aos mercados, de modo a que Portugal não perca a confiança que reconquistou nos últimos quatro anos?
Ora, julgo que sobre isto não há dúvidas: um Governo de Passos Coelho, mesmo em gestão, dá mais garantias do que um Governo que está refém do voto do PCP e da esquerda radical.
Além de que o PCP, o BE e o PS já mostraram a intenção de reverter algumas das medidas de consolidação orçamental em vigor, e de porem em causa privatizações em curso.
E isso será um sinal péssimo para o exterior.
A hipótese de um ‘regresso ao passado’ fará soar lá fora todas as campainhas.
Tem-se dito que Cavaco Silva quer sair de Belém com a situação resolvida e que um Governo de gestão está fora do campo das hipóteses.
Mas, se os deputados chumbarem Passos Coelho apesar do apelo feito ontem pelo Presidente, que remédio terá Cavaco senão manter o seu Governo em gestão?
A questão é que, se um Governo de gestão é mau, uma coligação dependente do PCP e do BE poderá ser muito pior.
Se um Governo de gestão é mau, um Governo que precisa constantemente do voto de dois partidos antieuropeístas e que rejeitam a economia de mercado poderá causar muito mais estragos ao país.
Na hora da decisão, Cavaco Silva terá de pensar muito bem no seguinte: se quer ficar para a História como o Presidente que apadrinhou o acesso ao poder da extrema-esquerda.
E ele deixou claro ontem que não o deseja.
Seria irónico ver Cavaco, que foi vítima das mais violentas críticas dirigidas a um Presidente da República após o 25 de Abril por parte do PS, do PCP e do BE, abrir-lhes as portas do Governo.