Para conseguir aumentar o número de vagas em Anestesia, uma das especialidades tradicionalmente com menos lugares, a Ordem dos Médicos encurtou o tempo de alguns estágios. Também Medicina Geral e Familiar terá mais algumas vagas, mas estas serão as exceções de um cenário que se prevê cada vez mais difícil para os médicos recém-formados, sob ameaça de desemprego. «Este ano, passámos de 64 para 80 vagas em Anestesia, o que se conseguiu reajustando o tempo de estágio em cada setor», disse ao SOL o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva. «Por exemplo, o tempo de estágio de Anestesia em Cirurgia Torácica, uma especialidade que apenas existe em poucos hospitais, foi reduzido de forma a possibilitar uma maior rotação», explicou.
Um problema que se antevia há muito
Médicos e estudantes de Medicina já vinham há anos a chamar a atenção para o problema da insuficiência de vagas nas especialidades. O bastonário diz que a capacidade máxima de formação foi atingida e que, «provavelmente, atingiu-se o ponto efetivo de rutura».
Em princípio, este será o primeiro ano em que médicos recém-formados não terão lugar em nenhuma especialidade: há cerca de 1.750 candidatos para sensivelmente 1.450 vagas. «Nos últimos dois anos só sobraram vagas porque alguns destes médicos emigraram e outros adiaram o exame de admissão à especialidade», explica José Manuel Silva.
Segundo bastonário, o problema não é, no entanto, o número de vagas disponíveis, mas o excesso de alunos que ingressam no curso de Medicina. Se a este número se somar o dos alunos que se licenciam no estrangeiro e voltam ao país para fazer a especialidade, obtém-se um valor muito superior ao da capacidade máxima de formação, que é de 1.500 especialistas por ano. Assim, 2015 será o primeiro ano de um futuro em os que médicos que terminam o curso não conseguirão ingressar numa especialidade. «Os jovens que vão fazer Medicina para o estrangeiro têm de se mentalizar que, em termos matemáticos, não têm vaga em Portugal. O que não quer dizer que não possam vir fazer o exame de admissão e tentar» – alerta José Manuel Silva.
Embora os números do plano de vagas para ingresso nas especialidades ainda não esteja fechado, a Ordem garante que muitos serviços estão a usar a sua capacidade máxima de formação e que, no futuro, teremos médicos a mais. «Por exemplo, há mais de mil internos de Medicina Interna. A formar 1.500 especialistas por ano, dentro de 30 anos temos 45 mil. Ora, neste momento já somos o quarto país com mais médicos da União Europeia». E a curto prazo haverá outras especialidades ameaçadas: «Em breve, os médicos de família estarão no desemprego. Daqui a três ou quatro anos vamos ter excesso de clínicos de Medicina Geral e Familiar. Já teríamos agora se não fosse a emigração».
Entretanto, o Ministério da Educação continua a abrir vagas nos cursos sem ter em conta a capacidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS): por ano, entram mais de dois mil estudantes em Medicina.
Fim do Ano Comum abre polémica
Rosário Stilwell, Afonso Moreira, Bruno Saraiva de Morais e José Pereira são quatro médicos recém-formados que daqui a menos de um mês (19 de novembro) farão o exame de admissão à especialidade.
No dia em que se inscreveram na Ordem dos Médicos, a 15 de setembro, puseram uma fotografia a circular nas redes sociais onde se manifestavam contra o fim do chamado Ano Comum, anunciado pelo secretário de Estado da Saúde. Trata-se de um ano de ensino pós-graduado de cariz profissionalizante, onde os médicos passam pelas várias especialidades sob a supervisão de médicos tutores.
A necessidade deste ano na formação é salientada pelos jovens. Para José Pereira, «o ensino de medicina na faculdade não é prático o suficiente» para que os médicos saiam prontos para entrar no internato. Bruno Morais assegura que, ao terminar o curso, sentiu uma «necessidade de complementarização prática para tratar da vida de pessoas».
O bastonário partilha desta opinião: «Unanimemente se reconhece que os médicos quando terminam o curso não estão aptos para o serviço autónomo».
Para os alunos, a possível extinção do Ano Comum será grave, mas insere-se num problema mais amplo que começa logo no acesso às especialidades. Os candidatos que ficarem de fora tornar-se-ão médicos indiferenciados, o que, na opinião de Rosário Stilwell «é um retrocesso em relação ao caminho que foi feito no sentido de construir uma Medicina melhor e mais virada para as pessoas». Esta médica ainda não decidiu que especialidade vai seguir, mas assegura que gostaria de «escolher uma tendo em conta um conhecimento que o Ano Comum também possibilita, de rodar pelas várias especialidades e ficar assim com uma noção mais prática de cada uma».
José Pereira ainda espera que não se confirmem as piores expectativas. Se de facto houver médicos a ficarem sem especialidade, isso será «um desperdício», salienta, «tendo em conta o investimento que é feito na formação e as lacunas em várias especialidades para algumas zonas do país».
Para Afonso Moreira, estas situações – tanto a questão das especialidades como as notícias sobre o fim do Ano Comum – resultam na «desmotivação de profissionais que vão concorrer ao SNS e dos que trabalham nele». Este jovem médico fala do SNS como «uma das maiores conquistas da democracia» e receia que esteja a ser posto em causa: «Para muitos jovens médicos, a solução é emigrar, como se tem observado em larga escala nos últimos anos».
‘Seria lançar dois mil médicos no desemprego’
Sobre a extinção do Ano Comum, o bastonário dos médicos, José Manuel Silva, é perentório: «Como a lei está neste momento, não vai acabar. Nem sequer foi criada uma comissão de análise, pelo que é ilegal. Se agora já não temos vagas, e ainda fosse abolido o Ano Comum, o resultado seria ter o dobro dos alunos a candidatar-se a uma especialidade. Juntar dois anos significaria, portanto, cerca de quatro mil candidatos às mesmas 1.500 vagas. Qual o Governo que vai assumir o ónus de enviar mais de dois mil médicos para o desemprego? Nenhum».