Após uma década à frente dos destinos do supervisor, Carlos Tavares confessa que sai com “alguma mágoa”, porque “a confiança no mercado é hoje menor do que há 10 anos e a dimensão do mercado de capitais também é menor”. No entanto, assume que abandonar o cargo com uma solução já definida para os clientes lesados do papel comercial do Banco Espírito Santo (BES) seria a melhor recompensa. “Era a melhor prenda de despedida que eu poderia ter. A CMVM nunca deixou ou deixará de fazer o que estiver ao seu alcance”.
No Parlamento, Tavares admitiu estar “profundamente” perturbado com este assunto e chegou mesmo a emocionar-se ao revelar que lê todas as reclamações que chegam à CMVM, “uma a uma”. O presidente da CMVM defende que compete ao Novo Banco encontrar uma solução comercial para pagar aos cerca de 2.500 investidores e opõe-se a uma descriminação entre clientes, enquanto o governador do Banco de Portugal remete o problema para os emitentes – as empresas do GES em insolvência no Luxemburgo – ou para o bad bank.
Ao SOL, Carlos Tavares diz continuar a receber muitas queixas de lesados. “As reclamações são um indicador poderoso dos pontos por onde devemos orientar a supervisão e temos conseguido ajudar a resolver muitos problemas dos investidores”.
Só até ao primeiro semestre deste ano, quase 700 investidores tinham apresentado reclamação. Destes, 40% são reformados ou estão desempregados. “Este caso criou uma natural avalanche de reclamações, a que é difícil dar resposta satisfatória para os reclamantes, sobretudo quando os meios de resolução não estão nas nossas mãos”.
Uma década de conjuntura adversa
O presidente do conselho diretivo do supervisor da bolsa assumiu a presidência da CMVM em 2005 a convite do seu antecessor no cargo, Fernando Teixeira dos Santos, que tinha acabado de ser nomeado ministro das Finanças do primeiro governo de José Sócrates. “Entrei na CMVM com expectativa de que fosse possível que os mercados de capitais tivessem mais importância do que têm tido. Não porque sejam um fim em si mesmo, mas porque são importantes para o funcionamento das empresas ou da própria economia”.
A quebra de confiança nos mercados na última década não é alheia à crise financeira que em 2008 atingiu uma escala mundial, à turbulência das dívidas soberanas da Zona Euro e ao resgate económico e financeiro a Portugal. No panorama interno, Carlos Tavares enfrentou ainda os maiores terramotos financeiros – nacionalização do Banco Português de Negócios, liquidação do Banco Privado Português, resolução do BES e insolvência do Grupo Espírito Santo -, além do colapso da Portugal Telecom.
“Com o que se passou nos mercados ao longo destes dez anos – sobretudo com alguns casos domésticos que abalaram muito o mercado de capitais e a própria evolução dos mercados – julgo que houve nos anos mais recentes muita pressão para se pôr toda a atenção sobre a recuperação dos bancos e a proteção dos depósitos, passando quase tudo o resto para segundo plano”, lamenta.
Supervisão independente
Sob a presidência de Carlos Tavares, a CMVM implementou várias reformas regulatórias que abrangeram amplas matérias, como o governo das sociedades cotadas, prevenção e combate ao abuso de mercado de capitais, produtos financeiros complexos, ofertas públicas de aquisição, sistema de indemnização aos investidores, auditoria, entre outras.
“Hoje, temos regulação e supervisão melhor, mais moderna. Acho que a CMVM fez o melhor que era possível fazer. Eu sou suspeito para o dizer, mas penso que teve sempre uma atitude muito frontal, muito direta e muito profissional”. E ainda muito independente face ao poder político, sublinha, ao lembrar que trabalhou diretamente com vários ministros das Finanças – Fernando Teixeira dos Santos, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque.
“Esse é talvez o gosto principal que eu levo: a independência com que esta instituição atuou e até como foi tratada pelos governos. Trabalhei com vários ministros das Finanças e não tenho um só episódio em que a independência da CMVM tenha sido beliscada”.
Carlos Tavares considera que essa independência é, por estranho que pareça, um “caso raro ao nível europeu”. E justifica que nos últimos dez anos viu muitos colegas, mesmo de países com mercados mais desenvolvidos, terem episódios que punham em causa a independência das instituições. “Aqui, nunca ocorreu. Essa é talvez a parte melhor que levo. Nunca fui questionado ou houve qualquer tentativa de orientação, num ou outro sentido”.
Planos para o futuro
Após uma década na supervisão, e com 62 anos, Carlos Tavares tem a intenção de regressar ao sistema financeiro. No seu currículo já constam o BPA, companhia de seguros Bonança, Unicre, CGD e BNU, além da SIBS e dos bancos Chemical Finance e Santander de Negócios Portugal. Além do setor bancário, teve ainda duas incursões na política, mas que considera “excecionais”.
“Acho que algumas coisas que gostava de ter visto acontecer nestes últimos dez anos no mercado de capitais – como poderem as empresas financiar-se mais facilmente sem tanta dependência da banca e mais através de capitais próprios – posso ajudá-las a fazer no futuro. Não consegui deste lado – nem é esse o papal da CMVM -, acho que posso ajudar do outro”.
O aumento do financiamento das pequenas e médias empresas pelo mercado em detrimento do crédito bancário foi uma preocupação sempre presente no discurso do presidente da CMVM. Para Carlos Tavares, as empresas têm poucos capitais próprios, mas não é porque querem. É porque não encontram forma de os obter. “Isso passa muito pelo comportamento das empresas e por um tipo de relacionamento diferente entre a banca e as empresas”. Dar mais crédito nem sempre é o “melhor serviço que pode prestar”. Precisam é de mais capital e há formas de o conseguir. “Tenho esta ambição, que pode ser exagerada, de tentar mudar um pouco este panorama”, conclui.
Lacunas na gestão cultural
Na entrevista concedida ao SOL, o economista, apelidado de ‘mestre em assuntos da banca’, assume que também gostaria de assumir um papel de broker cultural. “Também não me importava de ter uma experiência de gestão cultural. Um dos problemas da cultura em Portugal é a insuficiente capacidade de gestão”, explica. Isto porque, muitas vezes reclamam-se mais apoios e pensa-se que para tudo é necessário ter a intervenção do Estado.
“Acho que é preciso fazer mais cultura, mais atividades culturais, musicais ou outras para o público. E que sejam mais financiadas pelos utilizadores, que é a melhor maneira de produzir coisas de que as pessoas gostam. Não estou a dizer que não deva haver uma componente pública. É evidente. Mas faltam instituições profissionais de gestão cultural que percebam, ou que façam o interface entre os produtores da cultura e os destinatários. Que sejam uma espécie de brokers culturais”.
De acordo com o novo estatuto das entidades reguladoras, o próximo presidente da CMVM deverá ser uma mulher e passa a ter um mandato único de seis anos. Com as novas competências atribuídas ao supervisor, a sucessora de Carlos Tavares será responsável pela supervisão e registo de auditores, dos peritos avaliados de imóveis e também da atividade de crowdfunding.