Já se percebeu há muito que Cavaco não é homem de arrependimentos e autocríticas, mesmo quando as evidências mais elementares deveriam convidá-lo a isso. Decididamente, ele não é capaz de assumir que esse não é um sinal de força mas de fraqueza, sobretudo quando se tornou por demais clamoroso o tiro pela culatra ou efeito de boomerang do seu discurso.
Em vez de estimular a dissidência entre a esquerda – ou seja, entre os deputados do PS mais reticentes a uma aliança governamental com comunistas e bloquistas – Cavaco contribuiu para o resultado diametralmente oposto, como aliás seria previsível segundo o mais elementar bom senso.
Além disso, como é possível que um homem com tantos anos de vida política não tenha percebido que não pode contestar a legitimidade constitucional de partidos sufragados pelo voto de um milhão de portugueses, como são – goste-se ou não – o Bloco e o PCP? E como é que se atreve ainda a sugerir a vantagem absurda (e inconstitucional) de um Governo de gestão sobre um Governo votado pela maioria absoluta dos deputados – por muito que a vontade dessa maioria seja contraditória com o pensamento do Presidente?
Todas estas questões têm sido colocadas ao longo dos últimos dias, de forma mais ou menos direta, pela generalidade dos comentadores (excetuando aqueles cujo facciosismo empedernido lhes impede o mínimo rasgo de lucidez).
Mas há um mistério que permanece por explicar, a não ser pelas piores razões políticas – e também de caráter: como é que um homem politicamente tão experimentado se deixa arrastar para um beco sem saída e uma humilhação sem precedentes na parte final do seu mandato, ao fazer um discurso tão inábil, inconsequente e mesquinho?
Não podendo Cavaco ignorar que a insistência num Governo de gestão saído de uma rejeição parlamentar só conduziria a um afrontamento grave e permanente entre os dois principais poderes do Estado – e tendo ainda em conta o enfraquecimento do poder presidencial nesta fase terminal de mandato –, o que resulta do seu discurso é apenas uma manifestação de vingança gratuita e improcedente que irá manchar, de modo irreparável, o percurso feito no palácio de Belém.
Retrospetivamente, aliás, é o próprio julgamento de Cavaco, ao longo de toda a sua vida política, que também estará em causa, na análise detalhada do que fez como governante.
Como é que ele não é capaz de ver aquilo que se mete pelos olhos dentro, exceto os dos cegos irrecuperáveis? A resposta só pode ser uma: por causa de uma patética falta de grandeza, incompatível com o exercício da mais alta magistratura da nação e do estatuto de ‘Presidente de todos os portugueses’.
É esta herança que ele se prepara para nos legar, crispando ainda mais o país e arrastando-o para uma guerra civil virtual cujos efeitos se começam a manifestar – e para os quais Cavaco contribuiu, com a chantagem da pressão dos credores e dos mercados invocada no seu discurso, sem cuidar minimamente da soberania e dignidade nacionais.
O Governo a que Cavaco irá dar hoje posse foi feito à medida do seu destino imediato: a rejeição parlamentar. As alterações cosméticas – como a criação de um Ministério da Cultura, Igualdade e Cidadania, que é uma forma tosca de anular a singularidade de cada um dos conceitos – não disfarçam a evidência: este não é um Governo para quatro anos, como afirmou Passos Coelho, mas para quinze dias, construído a partir de um escasso número de militantes disponíveis e repescados ao acaso, para tapar os buracos deixados por aqueles que consideraram ter já cumprido a sua patriótica missão ou estavam demasiado gastos para permanecer.
Se acaso Cavaco persistisse na teimosia suicidária de um Governo de gestão, a imagem deste Executivo para queimar na fogueira parlamentar constituiria a contradição mais clara desse objetivo. Mas é já tarde para voltar atrás. E é por isso que a frase de Cavaco, segundo a qual não está «arrependido nem de uma única linha de tudo o que disse», ressoa como um dobre a finados por ele próprio.