Arrumados, provisoriamente, os ódios antigos a um canto da prateleira, eis o ‘milagre da rosa’ no seu esplendor, sentando à mesa inimigos de outrora. Com o pote à frente.
Se Mário Soares conservar vestígios de memória e de coerência, não poderá continuar calado. Seguramente, não foi para isto que ousou a Fonte Luminosa, em pleno PREC, opondo-se à nova ditadura do PCP, orquestrada por Cunhal.
Com este arranjo, António Costa hipoteca a herança de Soares e acaba por trair a boa-fé dos eleitores que votaram no PS, sem estarem avisados da viragem à esquerda radical. O país não é o Intendente, onde o ex-autarca montou o escritório.
Para acalmar os enganados, são lançadas manobras de diversão, com não poucas cumplicidades de alguma comunicação social.
A primeira, tem sido zombar do ‘Governo a dias’, fazendo passar a ideia de que este é uma mera formalidade, até entronizar o ‘Governo histórico’ de esquerda.
A segunda, é procurar condicionar Belém, apresentando o ‘Governo de esquerda’ como um facto consumado, como se ao Presidente não restasse outra coisa senão encolher os ombros e assinar de cruz.
Porém, conscientes de que estão a pisar o risco na fronteira do «regular funcionamento das instituições democráticas» – do qual o Presidente é o garante –, surgem os coros de serviçais, louvando o contorcionismo de António Costa.
Temem que Cavaco interprete à letra, como lhe compete, o regime semipresidencialista e não lhes faça a vontade, furtando-se à chantagem.
De facto, qual é o normativo constitucional que obriga o Presidente a convidar para formar Governo o líder do segundo partido mais votado, cuja pretensa legitimidade assenta na soma aritmética dos derrotados nas eleições?
Talvez, por isso, Jerónimo e Catarina têm-se desdobrado em entrevistas, numa esforçada estratégia para convencer os incrédulos da bondade das suas intenções.
A coordenadora bloquista teve mesmo o desplante de trocar as voltas a Costa, chamando a si a notícia de que «já há acordo» e que «as pensões vão ser todas descongeladas». Com que dinheiro, é um pormenor irrelevante que fica naturalmente para mais tarde.
Entretidos com estas piruetas, os deputados da ‘maioria de esquerda’ não tiveram pressa em começar os trabalhos parlamentares. Estão, pelos vistos, em gozo de férias antecipadas.
Contas feitas por alto – e caso a união atípica de esquerda consiga derrubar o Governo –, é muito provável que os deputados fiquem inativos até dezembro, enquanto aguardam o programa de governo seguinte. Uma festa.
Os partidos da coligação ainda quiseram o agendamento de um debate sobre a vinculação de Portugal ao euro e ao Tratado Orçamental. Tempo perdido. A ‘maioria de esquerda’ rejeitou a proposta em nome da ‘tradição’.
Ou seja: a tradição parlamentar molda-se à vontade do freguês. É negada quando se trata de impor um desastre chamado Ferro Rodrigues. É reposta para não sujeitar o PCP e o BE ao embaraço de explicar a sua duplicidade, defendendo em Estrasburgo o que escondem por cá.
Manuela Ferreira Leite atreveu-se um dia a dizer, num registo irónico, que as reformas de fundo em Portugal só poderiam ser implementadas desde que se ‘suspendesse’ a democracia durante seis meses. Ia caindo o Carmo e a Trindade.
António Costa, sem ironias, vai muito mais longe. Quer virar a democracia do avesso, por tempo indeterminado, incorporando no ‘arco da governação’ dois partidos totalitários, que são contra a União Europeia e a moeda única.
Compreende-se a urgência de Francisco Assis ao anunciar uma ‘corrente’ alternativa no PS e que surjam outros socialistas moderados, como Marçal Grilo, mandatário de Maria de Belém, que considera «perturbador o dr. António Costa ser primeiro-ministro tendo sido derrotado nas eleições».
Oxalá Cavaco Silva saiba extrair todas as consequências do que afirmou, num dos seus discursos pós-eleições: «Em 40 anos de democracia, nunca os governos de Portugal dependeram do apoio de forças políticas antieuropeístas». E que não sancione um logro, ao arrepio da vontade do eleitorado. Antes que o ‘frentismo popular’ suspenda a democracia.
A CGTP já deu o primeiro sinal, ao convocar uma ‘concentração’ para São Bento no dia da votação do Programa do Governo. O cerco vai repetir-se ou será um ensaio geral para montar a ‘muralha de aço’?…