Mas esta estatística assustadora, que tem vindo a subir todos os anos, pode ser apenas a “ponta do iceberg”, alerta Sara Teixeira, da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), lembrando que os peritos europeus estimam que uma em cada cinco crianças seja ou venha a ser vítima de abuso sexual. Também os relatórios das comissões de proteção de menores mostram um número diminuto de crianças sinalizadas por este problema: apenas 1,8% no total dos 73.779 processos do ano passado.
Para alertar a sociedade para o risco que correm os mais novos e ajudar a identificar e a denunciar estas situações, a Europa assinala pela primeira vez hoje o Dia Europeu para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e Abuso Sexual. Em Portugal haverá debates e ações de sensibilização para alertar o público para este crime.
“A informação e a prevenção são essenciais pois a maioria dos abusos são intrafamiliares ou cometidos por pessoas conhecidas das crianças”, considera Rute Agulhas, psicóloga forense. A especialista que avalia vítimas e agressores explica que os “abusos começam por comportamentos não sexuais, como cócegas ou outras brincadeiras inócuas, e são graduais, sendo que as crianças nem sempre têm noção do envolvimento sexual”. Sara Teixeira, da comissão nacional, acrescenta: “O abusador é alguém que não tem pressa, impõe um ritual de conquista e sedução, fazendo a criança acreditar que é especial”.
Crianças dão sinais
Há outros dados que reforçam a importância da sensibilização dos adultos, sublinha Rute Agulhas: “Até ser acreditada, uma criança faz nove tentativas de contar”. Nem sempre o faz de forma explícita mas através de indícios que são difíceis de detetar. Nos mais pequenos, os sinais podem ser alterações no padrão de sono, na alimentação ou no comportamento ou a imitação e o desenho de atos sexuais. Os mais velhos podem ficar deprimidos ou começar a consumir drogas e o seu sofrimento é mais psíquico.
Ana foi dando sinais de que algo não estava bem. Estava mais birrenta e pediu várias vezes à mãe para não ficar em casa da avó, embora gostasse muito dela e acreditasse, como esta lhe fazia crer, que era especial em relação ao irmão e que tinham um segredo que era para manter. Foi o irmão que acabou por relatar à mãe o que acontecia, pois esta nunca desconfiou que o mau estar da filha decorresse de um abuso.
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“A proximidade da vítima com o agressor gera na criança uma ambivalência de sentimentos”, acrescenta Isabel Polónia, coordenadora da investigação de crimes sexuais da Diretoria de Lisboa da Polícia Judiciária, explicando que é por isso que muitas vítimas têm dificuldade em denunciar os abusadores. “Por vezes, é uma pessoa de quem gostam mas que lhes faz coisas de que não gostam”. Pode ser o pai, o padrasto, o avô, um professor ou um vizinho.
Ou até um irmão. Como foi o caso de João, de cinco anos, que era abusado pelo irmão de 16 anos. Até ao dia em que a mãe saiu de casa mas teve de voltar mais cedo e surpreendeu o mais velho a penetrar a criança. Apanhado em flagrante, o agressor, filho de pai alcoólico e agressivo, acabou por reconhecer que o fazia “para se vingar do pai”. João, vítima deste abuso mas também de um conflito de lealdade para com o irmão, de quem gostava, mostrou-se incapaz de romper o silêncio até ser descoberto.
Em muitos outros casos, explica Sara Teixeira, da comissão nacional de proteção das crianças, o silêncio é imposto através de ameaças, verbalizadas ou não.
Culpa e vergonha inibem adolescentes de contar
Nos adolescentes, há outros fatores que impõem o silêncio: a culpa e a vergonha. Nos rapazes, a questão física também pode baralhá-los, explica Rute Agulhas. “Se têm uma ereção, o agressor pode jogar com isso, fazê-los acreditar que estão a gostar”. Nas raparigas, a transferência da culpa do agressor para a vítima também é uma forma de manter o silêncio. “Acontece nos casos dos abusadores que são padrastos ou pais, em que as mães chegam a acusar as filhas de os provocar e de lhes ‘roubar’ os companheiros”. Por vezes, como não encontram confiança nas mães nem na família, as raparigas desabafam com uma amiga que depois vai contar a um adulto, por exemplo um professor.
No caso de Joana não foi isso que aconteceu pois a menina de 12 anos confessou à amiga que mantinha relações sexuais com um homem de 40 mas esta guardou segredo. Só quando a mãe de Joana lhe apanhou o diário ficou a par dos encontros que decorriam num parque. Ao ser ouvida pelas autoridades, a menina reconheceu que percebia que o homem se “queria aproveitar” dela mas também que este a fazia sentir-se “especial”, pois envia-lhe mensagens de amor e levava-a para um esconderijo especial.
Os especialistas ouvidos pelo SOL não apontam um perfil das vítimas, que dizem ser impossível de traçar, tal é a diversidade de situações e de modus operandi dos abusadores. Mas há fatores de vulnerabilidade e critérios que levam os abusadores a escolher determinadas crianças, afirmam. “Miúdos isolados, carentes, sem supervisão parental, são mais vulneráveis. Se têm deficiência cognitiva são consideradas vítimas perfeitas”, afirma a especialista Rute Agulhas.
Adultos devem estar atentos
Sara Teixeira garante que os abusos sexuais acontecem em todo o tipo de famílias. E por isso defende uma prevenção universal, dirigida a crianças, pais, e a todos os que lidam com menores. “É preciso ensinar as crianças a detetar estes toques inadequados, a saber dizer não, e a contar”, explica a técnica da comissão nacional que vai aproveitar o Dia Europeu para divulgar materiais audiovisuais de prevenção.
Rute Agulhas considera que a prevenção ainda é muito incipiente em Portugal, “onde o sexo ainda é tabu e pouco se fala de toques, segredos ou emoções”. Ajudar as crianças, defende a psicóloga forense, passa também por ensinar os pais a fazer as perguntas certas. “Se o filho diz que não gosta das cócegas do tio ou não quer um beijo do avô não se deve dizer’ tens de dar porque ele gosta muito de ti’, mas tentar perceber porque não gosta”, exemplifica. Ou se diz ter um segredo com um adulto, não validar esse comportamento dizendo “tens razão, os segredos não se contam”, mas perguntar o que acontece se este o revelar. Também os professores e educadores devem estar mais atentos, defende a técnica forense.
A Polícia Judiciária considera que a sociedade está hoje muito mais desperta para este problema. A prova disso é o aumento das denúncias, diz Isabel Polónia, ressalvando, contudo, “que isso não significa que haja um aumento dos crimes”. As estatísticas dos últimos cinco anos da PJ, polícia que tem o exclusivo da investigação destes crimes, mostram a discrepância entre as queixas (7.327) e os crimes (4.213). “Quando há suspeita as pessoas denunciam logo”, diz Isabel Polónia. Há também muitas denúncias falsas, por exemplo, de pais separados que querem ganhar vantagem na regulação das responsabilidades parentais.