Amor na terceira idade

Quando Isabel Allende ouviu da boca de uma amiga que a mãe desta, de 80 anos, mantinha uma relação de amizade com um jardineiro japonês há mais de quatro décadas, ficou logo a pensar no que poderia ser uma história secreta de amor. Daí a sentar-se a escrever foi um tiro. O Amante Japonês, que…

Depois de O Jogo de Ripper que, editado no ano passado, marcou uma viragem na escrita da autora que aí se aventurou pelo policial, Allende regressa agora ao território que conhece melhor: uma história de amor. Território esse, aliás, que desde a publicação, em 1982, de A Casa dos Espíritos, lhe tem valido um enorme séquito de leitores, tornando-a numa das mais bem sucedidas autoras a nível mundial – segundo a sua biografia, Allende conta já com mais de 65 milhões de exemplares vendidos.

O segredo do sucesso de Allende passa, não só, pelas histórias românticas como pela criação de fortes protagonistas femininas. Aqui, essa mulher chama-se Alma Belasco. “Alma nasceu na Polónia numa família rica judia. Quando os nazis ameaçam invadir o país, o seu pai manda os filhos para o estrangeiro. Alma acaba a viver com os seus tios em São Francisco, onde vai passar o resto da vida. É uma mulher forte, solitária e orgulhosa, com um temperamento artístico e um coração romântico e apaixonado. Nascida e criada no conforto, nunca teve de trabalhar. Casa-se com o seu primo, e melhor amigo, Nathaniel.Até que, aos 76 anos, decide abandonar a mansão familiar, desfazer-se da maior parte dos seus bens e mudar-se para uma residência para a terceira idade”.

A história arranca quando Alma, que se torna uma das mais carismáticas residentes da Larke House, um excêntrico lar de idosos em SãoFrancisco, contrata Irina Bazili para sua assistente pessoal. Em conjunto com Seth, neto da anciã, Irina começa a investigar o passado de Alma. E o que descobre é uma história de amor secreta, com mais de 70 anos, entre a herdeira milionária e o seu jardineiro japonês, Ichimei. “Alma e Ichimei conhecem-se aos oito anos e apaixonam-se, como acontece frequentemente com as crianças. O seu amor dura até ao fim das suas vidas mas é um romance secreto. São separados pela raça, cultura, religião, classe social e riqueza”, diz Allende.

Tendo a história deste amor como pano de fundo, fio condutor e linha que cose toda a narrativa, o romance aproveita para pensar sobre outros temas. O mais evidente é, claro, a velhice, habitualmente tão arredada da literatura de grande consumo. “Foi-me bastante fácil criar personagens idosas para este livro porque estou rodeada de amigos mais velhos. O meu pai tem cem anos, a minha mãe 95. Sei o que se sente ao envelhecer e não é aquilo que os mais novos pensam”.

É que não é apenas por observar e conversar com os outros que Isabel Allende diz saber o que significa envelhecer. A verdade é que ela própria já pode usufruir dos descontos para a terceira idade. “Tenho mais de 70 anos. Não me sinto velha, sinto-me como se tivesse 50 anos, ainda tenho a mesma energia, imaginação e capacidade de trabalho que tinha na minha juventude. Ainda me u posso apaixonar, adoro o meu trabalho, quero diversão, alegria, sexo, ternura e todas as coisas que apreciei enquanto uma jovem mulher”, garante, lamentando que tudo isso não seja visto, e valorizado, por aqueles que se esquecem que, se tudo correr bem, também eles terão, um dia, 70 ou 80 anos. “Apesar de tudo isto, aos olhos da sociedade já sou sénior e não há muito espaço ou respeito para pessoas como eu. Tornamo-nos invisíveis. No ocidente, e em quase todo o resto do mundo, a cultura valoriza a produtividade, o consumismo, a juventude e a beleza. À medida que envelhecemos tornamo-nos um fardo”.

Fardo que Allende rejeita ser, assim como o rejeitam as suas personagens, aqui tão vivas aos 80 como o eram aos 20. Sabemo-lo porque as conhecemos também nessa juventude que, para tantos dos que têm agora 80 anos, foi duríssima. “Em todos os meus livros o tempo e o lugar são essenciais. Quando imaginei as vidas dos meus protagonistas percebi que a II Guerra Mundial tinha sido o que de mais relevante lhes tinha acontecido. A guerra tinha que fazer parte do romance porque determinou os seus destinos”.

Ao contrário, porém, do que vem sendo habitual na ficção americana, em que os soldados partem para libertar a Europa do jugo nazi, Allende mostra aqui uma realidade que raramente se encontra nos livros: o que aconteceu aos japoneses que viviam nos EUA. “Poucos sabem que existiam campos de concentração para japoneses nos EUA. Depois de o Japão bombardear Pearl Harbour o país entrou em pânico, com medo de que o Japão invadisse os EUA pelo Oceano Pacífico. A Costa Oeste foi declarada zona militar e 120 mil pessoas de origem japonesa foram presas e internadas nestes campos”. De acordo com a autora, se um terço destas pessoas eram imigrantes de primeira geração, dois terços eram já seus filhos. Ou seja, nascidos nos EUA e, como tal, cidadãos americanos. “Esta história não é muito conhecida. As famílias japonesas sentiram-se tão desrespeitadas e tão ofendidas que nunca falaram sobre isso. Os seus netos resgataram a história ao esquecimento e agora a informação está disponível”. A autora decidiu logo agarrá-la e usá-lo no romance.

E este não foi o único tema a exigir ser segurado com pinças na escrita de O Amante Japonês. Com uma história de amor protagonizada por pessoas de 80 anos tendo como cenário um lar da terceira idade, era inevitável falar não só de morte como de eutanásia. Tema a que a autora não se furtou. “Embora faça parte da nossa vida contemporânea, a eutanásia é ainda um tabu. Para pessoas que estão a envelhecer ou que têm pais já bastante envelhecidos, morrer com dignidade e sem dor são assuntos que fazem sempre parte da conversa. Alguns países, como a Holanda e a Suíça, já a legalizaram. Nos EUA alguns estados já aprovaram a morte medicamente assistida. A Califórnia é um deles”.

Com uns vigorosos 73 anos, Isabel Allende não tenciona retirar-se. E, nos próximos livros, há algo com que seguramente se pode contar: “O amor está sempre presente nas minhas histórias, tal como tem estado na minha vida. Acredito que é a força que move a natureza e que nos faz humanos”. É, seguramente, o ingrediente chave que contribuiu para os milhões de livros vendidos. Número que promete engrossar com este amor nipo-americano.

rita.s.freire@sol.pt