Benjamin Clementine: ‘Estava tão perdido que ou escrevia canções ou suicidava-me’

O telefonema já tinha ultrapassado há alguns minutos o tempo combinado quando Benjamin Clementine nos brinda com esta pérola: “Ainda sou um vagabundo. Agora só um pouco mais rico – e não falo só de dinheiro, mas de vivências também -, e já consigo tomar banho e lavar os dentes todos os dias”. Pérola porquê?…

O telefonema já tinha ultrapassado há alguns minutos o tempo combinado quando Benjamin Clementine, 26 anos, nos brinda com esta pérola: “Ainda sou um vagabundo. Agora só um pouco mais rico – e não falo só de dinheiro, mas de vivências também -, e já consigo tomar banho e lavar os dentes todos os dias”. Pérola porquê? Porque aquele ‘vagabundo’ não surge aqui só em referência à sua anterior vida como indigente em Paris. Há um sentido muito mais poético na auto caracterização. Como se a sua existência dependesse visceralmente dessa condição nómada e, em certa medida, solitária.

“Não tenciono ter uma casa em breve. Só estou preocupado com a minha música e sinto-me focado como nunca estive antes”, confirma,  mencionando ainda que durante a infância e adolescência nunca foi rapaz de fazer muitos amigos. Não desenvolve porque somos interrompidos pelo promotor da Universal Music, que nos pede para terminarmos a conversa. “O Mr. Benjamin ainda tem mais três entrevistas pela frente”, desculpa-se.

Nesse sentido, é oportuno dizer que o telefone só tocou cerca de 40 minutos depois da hora planeada. Uma manhã agitada, supomos. “Todas as entrevistas estão a demorar um pouco mais”, justifica-se o assessor pelo atraso. Não nos surpreende. No verão, poucos meses depois de o disco de estreia, “At Least For Now", ter sido editado, Benjamin já era apresentado como uma das revelações musicais do ano. O palpite saiu reforçado há um mês – quando foi nomeado para o cobiçado Mercury Prize (prémio que venceu ontem à noite) -, sendo já seguro prever que, no final do ano, o seu álbum vai encabeçar muitas das listas dos melhores de 2015.

O momento é tão auspicioso para o artista que até a digressão que realiza a partir de amanhã em Portugal permite legitimar o sucesso que atingiu: cinco espetáculos, que passam por Braga (domingo, Theatro Circo), Aveiro (terça, Teatro Aveirense), Porto (quarta, Casa da Música), Lisboa (sexta, no Vodafone MexeFest) e Faro (sábado, Teatro das Figuras). Algo inédito num mercado tão pequeno como o nosso, especialmente a descida ao Algarve, onde é raro agendarem-se concertos fora da época alta.

É a música – dramática, ostensiva, épica, eloquente -, que justifica os destaques prolongados de que tem sido alvo mas, se isso não bastasse, há também uma apelativa história pessoal para contar: foi descoberto quando cantava no metro de Paris (há inúmeros vídeos no YouTube), cidade onde vivia da esmola que conseguia amontoar graças ao seu vozeirão.

Das ruas para o Mercury

Benjamin não se envergonha desses tempos, mas prefere não se alongar sobre eles. Não quer, de todo, que os pormenores desta sua ascensão desviem a atenção da música. Como se isso fosse possível, sendo ele o vencedor deste ano do Mercury. “Se ganhar – e o Mercury é o único prémio que gostaria mesmo de ganhar um dia porque, na minha opinião, é o mais prestigioso – acho que ainda vai ser pior. Já estou a ver os títulos: ‘ex-mendigo vence Mercury’”, disse ao SOL uma semana antes de se conhecer a vitória.

A reserva quanto à sua antiga vida foi assumida muito antes de o primeiro álbum sair. “As pessoas querem ouvir uma bela história […] mas não percebo a curiosidade de se falar nisto. Acontece todos os dias, há pessoas obrigadas a viver como sem-abrigo todos os dias”, afirmou ao jornal britânico Observer, em agosto de 2014. Sobre os anos em que viveu em Paris, ao SOL só acrescenta que se sente “sempre mais inspirado na cidade” do que em Londres, daí que tenha sido na capital francesa que começou a compor a sua música.

Nascido e criado nos arredores de Londres, filho de pais ganeses, Benjamin tinha seis anos quando se interessou pelo piano, depois de uma colega ter levado para a escola um em miniatura. Proibido de se aproximar do instrumento, Benjamin acabou por o esconder na mochila e passou a noite a tocá-lo em casa. No dia seguinte, tinha um castigo à sua espera na escola, mas ainda hoje recorda esse primeiro contacto como um dos melhores momentos da sua vida.

Apesar do interesse, Benjamin nunca teve condições para estudar música, mas aprendeu a tocar piano sozinho, só de ouvido, numa aprendizagem “que levou anos”. “Nunca apresso nada. Ouvia uma canção e passava meses com ela, à procura das notas até tocar tudo igual. Só começava um tema novo quando já tinha interiorizado o anterior”. Erik Satie e Antony and the Johnsons foram os primeiros ‘mestres’.

A pop é "ridícula"

Já em Paris, deixou-se encantar pela obra de Charles Aznavour, Léo Ferré, Edith Piaf, Jacques Brel, Serge Gainsbourg, George Brassens e Claude Debussy, nomes que juntou às referências que já trazia de Londres como Nina Simone, Jimi Hendrix, Nick Drake, Bod Dylan ou Nick Cave. Nunca prestou atenção a estrelas da pop. “Também tentei reproduzir, mas percebi rapidamente que a pop não me interessa. Sou muito conservador nos meus gostos musicais e a pop é muito aborrecida. Aliás, é lixo. É ridícula”.

Apesar do tom categórico, Benjamin não desvenda quais os artistas cujo trabalho despreza. “Acho que sabe de quem estou a falar. Claro que há pop que tem piada mas a americana e britânica são simplesmente disparatadas. Mas, já agora, Paul McCartney [que o elogiou publicamente há mais de um ano] nunca fez música pop”, sublinha.

Não é só a sonoridade descomprometida e saltitante que afasta Benjamin do género. São, sobretudo, as letras “sem propósito e ambição nenhuma” que o incomodam. “Será que ouvem o que cantam? Faz algum sentido dizer ao mundo: ‘Baby, I want to have you’. Uma canção é um instrumento de poder, de passar mensagens… Acho que não preciso de me explicar muito mais.”. De todo. E também não precisa de esclarecer as suas próprias letras, de tão explícitas e autobiográficas que são, cheias de referências às dificuldades (físicas e emocionais) por que passou.

Daí a atração profunda que as pessoas sentem por si quando o ouvem a cantar? “Talvez, não sei bem. Acho que pode ter a ver com o facto de a minha música ser brutalmente honesta. A música que faço tem tudo a ver com sinceridade. Estou a falar sobre problemas da vida que, apesar de serem meus, toda a gente passa por eles. Então, é fácil relacionarem-se com a minha música”, comenta, frisando que “escrever sobre a vida” é a única coisa que lhe interessa. 

E ainda consegue ser mais sincero quando lhe perguntamos qual foi a motivação para fazer canções: “Estava tão perdido, numa fase de frustração tão grande, que ou escrevia canções ou suicidava-me. Quando estás numa situação limite, tens duas opções: ou fazes algo, ou terminas tudo ali. Tive a sorte, ou fui corajoso o suficiente, para não desistir. Escrevi o que sentia e isso ajudou-me”. Um caso típico de alguém que foi salvo pela música. “Salvação soa mais suave do que é na realidade… Bem, sim, podemos dizer que foi uma espécie de salvação", diz, remetendo-se ao silêncio para pensar. Até que exclama: “A música foi uma graça divina!”. E que abençoados somos todos nós de o podermos ouvir.

alexandra.ho@sol.pt