Ana Santos Pinto: ‘Derrotar o EI não se resolve assim’

Só com a união de Turquia, Irão e Arábia Saudita se pode vencer o Estado Islâmico e alcançar uma solução política para a Síria e Iraque, defende a professora da Universidade Nova e investigadora do Instituto de Defesa Nacional e do Instituto Português de Relações Internacionais

Há quem defenda a tese de que o EI está a preparar uma armadilha à Europa, ao provocar uma onda antimuçulmana que acabe por captar mais jovens muçulmanos europeus.

Faz sentido e é um argumento em que devemos pensar. O EI, como a al-Qaeda fez, está a aproveitar-se de vulnerabilidades das sociedades europeias, designadamente as franjas potencialmente radicalizáveis e a forma como sabe que as reações das comunidades são de afastamento e de divisão entre nós e o outro. É a primeira reação emocional que se tem. É um fenómeno de segurança internacional, mas também uma matéria interna às sociedades europeias muito difícil de resolver.

Concorda com autores que declaram que o modelo do EI é quase imbatível?

Tenho dúvidas quanto ao adjetivo imbatível. O EI percebeu o que não funcionava com a al-Qaeda. Era a falta da existência de uma coisa palpável. A noção do autoproclamado EI passa por ter território, população e executivo. O executivo tem dinâmicas hierárquicas, há funções ministeriais, vamos dizer assim. E há uma ligação com a autonomia financeira: exploração de jazidas de petróleo, exploração da criminalidade organizada, que vai do tráfico de artefactos ao tráfico humano, à extorsão às populações. Há um autofinanciamento do movimento, que é distinto da al-Qaeda, que vivia dos chamados stakeholders externos. O EI aprendeu isso e a ligação com a criminalidade organizada é muitíssimo importante – e não é exclusiva no Médio Oriente. É uma rede transnacional que passa pelos Balcãs e pela África subsaariana. No combate ao EI é absolutamente vital controlar os fluxos financeiros. E controlar as redes de criminalidade organizada que alimentam este financiamento.

Na cimeira do G20 Vladimir Putin acusou alguns países presentes de serem financiadores do EI.

A Arábia Saudita tem múltiplos movimentos e linhas internas que financiam grupos diferentes, o Qatar, igual, os Emirados, igual… Há vários financiadores, certamente alguns do Golfo, mas não só.

O G20 decorreu na Turquia. Este país pode ter um papel-chave?

A Turquia tem um papel central e complexo, lembremo-nos de que é membro da NATO. E a questão dos curdos é muito significativa. Repare: se o combate ao EI é feito por intermédio de grupos curdos e se os curdos têm uma expetativa de autodeterminação temos aqui um problema muito difícil de resolver porque temos parceiros dos dois lados do combate. O dossiê curdo é delicado, não só na região, mas também no quadro europeu e da Aliança Atlântica. Já o EI, a Síria e o Iraque não se resolvem sem três atores: a Turquia, o Irão e a Arábia Saudita. Sem sentarmos os três à mesma mesa e alinharmos uma solução política não se consegue resolver o problema do EI. Depois há a intervenção militar com atores que têm de ser regionais, não podem ser só os internacionais.

Hollande vai agora tentar forjar uma aliança com Rússia e EUA.

Nos últimos 30 anos qual foi a intervenção militar, externa, que resolveu um problema no Médio Oriente? Não se resolve assim. Podem aumentar a intensidade da intervenção. Depois é preciso os atores regionais seguirem o mesmo caminho e é preciso uma consciência que os atores internacionais não têm. Enquanto isto não for resolvido, esse potencial de intervenção, a existir, tem um sucesso muito condicionado, uma eficácia de curto prazo.

Se houvesse uma derrota territorial do EI, este teria condições para prosseguir?

Houve uma derrota militar da al-Qaeda e surgiu o EI. Existindo uma derrota militar e territorial do EI, se o problema fundacional não for resolvido, outro surgirá dentro do género. Em primeiro lugar o EI é uma ameaça para as populações e para os Estados do Médio Oriente, e por isso tem que ser limitado e derrotado na sua ação. Mas isso não soluciona o problema fundamental de fronteiras e de comunidade política no Médio Oriente e de radicalização de um discurso que tem acolhimento interno e externo. Desaparecendo o autoproclamado EI, que é um epifenómeno, outra coisa surgirá, enquanto o problema original, que é de comunidade, de construção de Estado e de comunidade nacional não estiver resolvido. E da dicotomia de poder dos vários poderes do Médio Oriente. Militarmente é possível derrotar o EI, só que o problema é político também e esse é muito mais difícil de resolver.

cesar.avo@sol.pt