Na acusação que acaba de deduzir, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) considera que Macedo beneficiou um amigo e ex-sócio no concurso público para manutenção dos Kamov, deu ordens ao diretor do SEF para colocar um Oficial de Ligação na China – o que favoreceu negócios de outras duas pessoas de quem era próximo – e interveio junto do então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, para que este recebesse Lalanda e Castro, representante em Portugal da Octapharma e e também arguido na Operação Marquês.
Caderno de encargos três meses antes
Os investigadores descobriram que, em março de 2014, Miguel Macedo enviou o caderno de encargos do concurso público para manutenção dos Kamov ao seu amigo Jaime Gomes. O e-mail, a partir do endereço oficial do MAI e com toda a informação sobre os critérios do procedimento, foi encaminhado três meses antes da abertura oficial do concurso (em junho).
Jaime Gomes tinha interesse naqueles dados, diz o Ministério Público (MP), uma vez que poderia tirar proveitos da relação que já há muito tinha com o grupo FAASA Aviación S.A. O facto é que os serviços de manutenção dos Kamov foram adjudicados à Everjets que por sua vez subcontratara o grupo FAASA, que é “parceiro comercial” de Jaime Gomes.
Ordens a diretor do SEF para agilizar vistos
Mas nem sempre Macedo agiria de forma isolada. No despacho de acusação, pode ler-se que por diversas vezes pressionou Manuel Palos, então diretor do SEF, para que alguns processos burocráticos fossem acelerados. Palos acederia quase sempre.
Segundo o MP, Manuel Palos pretendia agradar a Macedo, que desde que tomara posse tinha deixado clara a intenção de extinguir o SEF e incorporar o serviço noutro órgão de polícia criminal. Na prática, segundo a acusação, Palos queria não deixar de ser diretor.
Numa das situações descritas, o ex-ministro pediu-lhe que atendesse aos interesses da ILS, de Lalanda e Castro. Em causa estava a necessidade de acelerar a atribuição de vistos temporários a doentes líbios – e seus acompanhantes – que a empresa traria a Portugal para tratamentos médicos, ao abrigo de um protocolo com o Ministério da Saúde da Líbia.
Quem fez a ponte entre o então ministro da Administração Interna e a ILS foi uma sociedade de Jaime Gomes, a JAG. No total, em 2013 a ILS recebeu mais de 18 milhões de euros para prestar serviços de assistência médica e logística a 342 feridos da guerra civil líbia. Por sua vez, a ILS pagou à JAG, pela consultadoria e apoio logístico, mais de 100 mil euros, entre o final de 2013 e maio de 2014.
Telefonema a Paulo Núncio para obter isenção de impostos
Mais tarde, entre fevereiro e abril de 2014, Macedo aceitou voltar a interferir a favor da ILS, desta vez junto do secretário de Estado da Administração Fiscal, Paulo Núncio. A ILS tinha sido confrontada com a obrigação de liquidar o IVA dos serviços prestados ao Ministério da Saúde da Líbia, mas, como se tratava de serviços a um outro país, considerava estar isenta do pagamento de impostos em Portugal. Núncio aceitou receber uma comitiva da ILS, tendo depois transitado a análise do caso para outros responsáveis do Ministério das Finanças. Em julho, o caso já estava resolvido, graças à apresentação de um documento que sem influências não teria sido aceite pelas Finanças, diz o MP.
A acusação refere que foram “1,8 milhões de euros não liquidados a título de IVA na faturação emitida pela ILS ao Ministério da Saúde Líbio, valor que o Estado deixou de arrecadar”.
A confirmação de que já não era preciso pagar o IVA foi comunicada em julho por Núncio a Macedo, que reencaminhou a seguinte mensagem para o amigo Jaime Gomes e parceiro comercial da ILS: “Boa notícia. Aquilo está resolvido”.
MAI à disposição de presidente do IRN
Outra das ordens dadas de forma abusiva por Macedo a Palos, sustenta a acusação, foi para que este arranjasse alguém para Oficial de Ligação em Pequim. O ex-ministro pretenderia com a colocação de um responsável na capital chinesa beneficiar negócios de Jaime Gomes, de António Figueiredo (seu amigo e então presidente do Instituto dos Registos e Notariado), e do empresário Zhu Xiaodong.
Estes três arguidos pretendiam expandir para a China a “atividade imobiliária instrumental” que já vinham desenvolvendo em Portugal – ou seja, angariação e prospeção de imóveis específicos para cidadãos que pretendessem vistos gold. Nesse sentido, esperavam, com a presença de um Oficial de Ligação em Pequim, contornar os atrasos constantes na atribuição de vistos a cidadãos chineses.
A proposta feita pelo SEF acabou por não receber qualquer despacho de Macedo, pois nessa altura (entre março e abril de 2014), houve uma fuga de informação e Figueiredo soube que estava a ser alvo de escutas. A acusação refere que o documento em que era proposto o nome de Isabel Gonçalves, inspetora principal do SEF, não estava nos locais que foram alvos de busca, mas foi entregue à investigação mais tarde.
Ex-dirigente da Justiça favoreceu Figueiredo
Além de Miguel Macedo, há mais dois arguidos que assumem um papel central nesta teia: António Figueiredo e Maria Antónia Anes, x-secretária geral do Ministério da Justiça.
Figueiredo, diz o MP, ter-se-á aproveitado do seu cargo para ter acesso a informação privilegiada e assim conseguir contrapartidas financeiras em negócios do empresário Zhu Xiaodong e com a mulher deste. Além disso, o presidente do IRN era uma ponte para Macedo, que por diversas vezes terá conseguido contornar os obstáculos que surgiam.
O esquema montado por Figueiredo estendia-se a Angola, onde terá conseguido comissões através de um conluio com o arguido Eliseu Bumba e alguns funcionários do IRN.
Mas Figueiredo acaba por ser também a ligação de Maria Antónia Anes a todo este caso. Isto porque a também vogal não permanente da CReSAP terá favorecido Figueiredo, em 2013, no concurso aberto para nomeação do presidente do IRN. Em troca, diz o MP, Figueiredo também beneficiava pessoas indicadas por Antónia Anes em concursos abertos no IRN.
MP arrasa arguidos
Os quatro procuradores que assinam a acusação não poupam críticas a Miguel Macedo e restantes arguidos. Referem, nomeadamente, que a conduta do ex-ministro e de Figueiredo foi “inadmissível”.
Além de considerarem que a teia de influências montada representa “o muito grave e acentuado desrespeito pelos deveres funcionais e pelos padrões ético-profissionais de conduta”, afirmam que este tipo de atuação demonstra “falta de competência e honorabilidade profissionais”.
Ainda na perspetiva da acusação – que pede a condenação de Figueiredo, Xiaodong e mulher a pagarem cerca de 750 mil euros ao Estado -, houve “uma inadmissível promiscuidade de funções que privilegiava interesses essencialmente privados em detrimento manifesto de interesses públicos”.
O SOL tentou obter um comentário dos advogados dos arguidos. Apenas João Medeiros, que defende Manuel Palos, aceitou reagir: “O papel tudo aceita! O complicado é que a lei impõe que se tenha de provar o que se escreve”.