Jardim Gonçalves: ‘Pecados não me faltam, não preciso de mais’

Recebeu-me dois dias antes dos bárbaros ataques de Paris, telefonou-me mais tarde a perguntar se não deveríamos falar do assunto, do horror de um mundo que não parece poder apaziguar-se. Disse-lhe que não, a conversa foi o que foi, no tempo que foi. Esta é uma entrevista única com Jorge Jardim Gonçalves. Não é um…

Sentámo-nos em duas cadeiras, por detrás um quadro de Manuel Amado, seu amigo de sempre. Falámos mais de duas horas. A sua mulher, amor de uma vida, estava na sala de estar, preferiu não participar. Depois de alguma conversa gasta, de circunstância, entrámos no que queríamos, ‘cami- nhámos’ lentamente para ganhar balanço e depois deixámo-nos ir. Fomos à infância, ao poder, ao assobio com que chamava o pai, à viagem que ainda tem para fazer com Assunção, ao banco que faria hoje, às ideias que está a concretizar, aos netos e à relação com Pedro Maria Teixeira Duarte, uma história shakesperiana. Falou também de António Costa e Passos Coelho. Do país à venda e a saldo. Da sua explicação para a estranha constatação de que foram as pessoas à esquerda que na política nunca o abandonaram. Espero que goste. Começámos assim

Vejo-o mais tranquilo. É um sinal de que a sua via sacra terminou?

A expressão via sacra nada tem a ver com os meus problemas, são temas diferentes, quem sou eu para me poder arrogar o direito de falar em via-sacra? Estes anos mais difíceis foram vividos dia a dia, fui-me ocupando, pensando, resistindo, escrevendo.

E ocupando-se do lançamento do seu vinho.

Isso é muito recente. Resolvemos tirar algum partido do trabalho feito em dois hectares, se o produzia porque não introduzi-lo no mercado? Saiu bem. Se for possível comercializá-lo terei nisso gosto.

Como se vai chamar?

Chama-se Infinitude. Um nome que tem a ver com a minha atitude, a ideia de que estive sempre nos lugares por onde passei como se lá pudesse estar até à eternidade. Não estou a pensar que vou ter outra função.

Nestes dez anos de tantas dificuldades nunca se esqueceu da palavra ‘Infinitude’?

Há dias que são mais agradáveis do que outros, todos concordamos. Mas nesses anos de que fala, nesse tempo gasto em tribunais, com advogados, a escutar, a perceber a relação com autoridades e reguladores, tudo isso foi um tempo de aprendizagem que me enriqueceu e me fez ver como o Estado funciona, como a justiça funciona, como a solidariedade funciona. Percebi que nos processos judiciais mais do que aprofundar, as pessoas seguem uma linha que vem de trás e pouco mais fazem do que prosseguir essa linha. Diria que é um tempo fecundo, de grandes oportunidades, ainda agora estou com outras pessoas a lançar um projeto muito pequenino ligado à saúde.

Isso é uma notícia.

Não sei se é…. Quando ajudei a fundar os colégios de Fomento pensei numa perspetiva de ajuda à educação, porque não nesta fase de vida fazê-lo em relação à saúde? É uma empresa que vai tentar ajudar pessoas a resolver problemas sem terem de ir a uma urgência, a ajuda estará à distância de um telefonema.

Imagina a sua vida sem ser a trabalhar?

Qualquer um de nós não imagina a sua vida sem trabalhar. Seja lendo, pensando, escrevendo, seja assistindo a família, tudo é trabalho. Mas de todas as coisas, se tivesse de escolher as ferramentas essenciais de vida, escolheria a leitura e o investimento na família.

Coloca a leitura a par do investimento na família?

Ler é poder entrar noutros mundos, é poder abrir horizontes.

Em matéria de crise não lhe saberia dizer qual está em pior forma, família ou leitura.

Nem eu. Ambas não estão a ser cuidadas.

Continua a fazer o mesmo ritual antes de fechar a luz da sua mesa de cabeceira?

Sempre. Vejo a fotografia dos meus pais e a imagem de São José. Gosto de José por ser tão discreto, nas pinturas e celebrações está quase sempre na sombra, mas foi importante.

O homem que fica na sombra mas que não deixa de ser por isso importante.

Sim, isso.

Tem algum paralelismo com o seu pai Agostinho?

Diria que sim. Toda a vida transmitiu valor sendo sempre discreto, quem o consegue fazer tem muito encanto, o meu pai foi uma pessoa encantadora.

Ainda se lembra do assobio que fazia ao passar pelo escritório dele?

Claro. Quer ouvir?

Gostava muito.

(faz o assobio…) Sabe uma coisa que muito me orgulha? Tenho filhos que estão a reproduzir este meu assobio, que o estão a ensinar aos seus filhos, é o nosso segredo. Gostava muito, e talvez ainda o faça, de colocar azulejos no início de alguns dos caminhos aqui na casa, azulejos que celebrem a memória, o passado, os meus pais e avós. Não vivi muitos anos na Madeira, mas sou muito madeirense, sinto e tenho viva a dureza de viver numa ilha.

Como define numa palavra esse estado?

Isolamento, solidão interior, sossego. Na minha juventude as viagens eram feitas de barco, dois dias inteiros, pensávamos muito. A viagem de avião não tem graça.

Voltando atrás, procurou encontrar um sentido transcendente para o que lhe aconteceu nestes últimos anos?

Não fiz esse exercício. Foi tudo muito terreno. Nas audições e testemunhos ficou clara a razão para as coisas terem acontecido de determinada maneira. Já passou, o que interessa agora ao país é uma outra coisa: como sobrevivermos sem instituições fortes e soberanas? Como limitarmos um bocadinho as nossas regras democráticas às regras que vêm do exterior? É que temos mesmo de o fazer, não nos toquem na nossa cultura e na nossa soberania, se tocam aí o que nos fica?

O que temos hoje?

Teremos o que conseguirmos recuperar, temos de o tentar. Estamos piores do que em 1975. Porque durante o PREC, quando aconteceram as nacionalizações, o património ficou no Estado português e a seu tempo, em menos de uma década, criámos condições para que investidores privados pudessem entrar no jogo. Hoje, não. O que aconteceu é que a nossa soberania se transferiu para países estrangeiros.

Esses não são os perigos das privatizações?

Não é uma palavra correta, não foram privatizações, é falso. Foram alienações, transferências de património por troca de alguma riqueza que não foi proveitosa para Portugal.

Nesse sentido, parece-lhe que um governo de esquerda pode até ser uma boa notícia?

É provável que venhamos a assistir a uma mudança de regras motivada por uma série de alterações nos governos nacionais. Porque repare, e isto para mim não tem a ver com a direita ou a esquerda, mas onde está a voz do povo, a voz de cada nação, a Europa tem de ser uma Europa de nações, são séculos e séculos. O nosso Parlamento em que medida é que se dá ao respeito e influencia as decisões europeias? O chamado governo de esquerda, a acontecer, se calhar vai coincidir com uma revisão global.

Está a pensar também na Grécia.

Na Grécia, em Espanha, na Itália e até na própria Alemanha. São movimentos que vão obrigar a uma reformulação de processos, a palavra austeridade vai cair, as pessoas não a vão querer e os políticos têm de adotar aquilo que as pessoas globalmente querem, essa é a sua essência. Qualquer mudança terá de surgir no todo, não em partes isoladas.

É excessivo dizer que almoçaria mais depressa com António Costa do que com Passos Coelho?

Procuraria falar com os dois. Já falei mais com o Dr. Passos Coelho do que com o Dr. António Costa, nunca tivemos oportunidade de conversar sobre o país. Neste momento teria curiosidade e gosto em poder ouvir o Dr. António Costa sobre alguns problemas. Em relação ao Dr. Passos Coelho não creio que tivesse gosto em voltar a falar comigo – sabe o que eu acho sobre a linha dócil de Portugal em relação às regras que foram impostas. E antes disso tive oportunidade de dizer que esta coligação estava errada, deveria ser uma coligação entre o PSD e o PS, não com o CDS.

Foi o primeiro a dizê-lo.

É verdade. Naquela altura tive uma reação do Dr. Mário Soares, disse-me que tinha razão mas que teríamos de esperar. São coisas que não tenho capacidade para analisar, mas sem o PS no poder não há mudanças estruturais, torna-se impossível. Com uma aliança entre PSD e CDS nunca seria possível uma reforma do Estado, e quanto ela continua a ser necessária. E deixemo-nos de coisas, sem o PS no poder não há diálogo possível com as centrais sindicais.

Posso lançar-lhe um desafio? Digo um nome e o senhor define-o numa palavra.

Parece-me arriscado. Mas vá lá.

Mário Soares.

É um democrata e uma pessoa grata.

António Guterres.

Para mim é o último primeiro-ministro que tem uma ideia do que é uma nação.

Durão Barroso.

Uma pessoa que não mede as consequências.

Álvaro Cunhal.

Um homem corajoso sem ser temerário.

Catarina Martins.

Perdeu algum encanto depois das eleições, seria interessante se o recuperasse.

António Costa.

Está a ganhar alguma opacidade. 

Papa Francisco.

Deliciou-me com a encíclica da Casa Comum, um texto magnífico.

Há a ideia de que o Opus Dei não gosta do Papa Francisco.

Do Opus Dei a única coisa que oiço sempre é o amor ao Papa, nunca ouvi coisa diferente. 

Não é estranho que sejam as pessoas mais ligadas à esquerda que nunca o abandonaram? Mário Soares, Jorge Sampaio, António Guterres e Ramalho Eanes, por exemplo.

Sempre tive muitos amigos de esquerda, mesmo enquanto estudante. Estive sempre com D. António Ferreira Gomes, exilado do Estado Novo. Sempre fui este, simplesmente as pessoas confundem o conservadorismo com parcialidade e falta de respeito por cada um, tenho o respeito profundo pelas pessoas sejam elas progressistas, católicas ou ateias, conservadoras ou socialistas. Por isso, nunca tive conflitos com sindicatos, trabalhadores, eles sabem-no bem. 

Veio-me à cabeça o que julgo ser o seu primeiro encontro com Álvaro Cunhal.

No Palácio da Ajuda, numa receção dada pelo Presidente da República, não me recordo a quem. Estávamos distraídos a conversar e os convidados começaram a dirigir-se para as mesas, resolvemos resguardar-nos no vão da janela. Deixámos passar toda a gente, fomos depois, mas estávamos bem os dois, sentíamo-nos perfeitamente bem.

As figuras que o colocaram em causa durante a derrocada do BCP, com a exceção de António Mexia e Vítor Constâncio, caíram em desgraça. Tem alguma leitura sobre isso?

Não tenho nenhum gosto com nada de mal que possa acontecer a alguém, de todo.

Isso seria um grande pecado.

Pecados não me faltam, não preciso de mais. O que aconteceu foi um jogo de interesses, um jogo em que cada um desempenhou um papel. Os políticos (Carlos Santos Ferreira e Armando Vara), que estavam sentados na Caixa Geral de Depósitos, a certa altura pensaram que podiam sentar-se no BCP; foram ao primeiro-ministro (José Sócrates) que se dirigiu a um outro banqueiro (Ricardo Salgado) para que pudesse apoiar o investimento de novos acionistas que não tinham capital suficiente. Depois, na vida há sempre alguém, por um motivo ou por outro, que se sente excluído, se sente despeitado, que espera o seu momento. Todos fizeram o seu papel, todos entraram num plano muito bem concedido e com o objetivo de tomar de assalto o BCP.

Está a pensar em alguém em particular?

Não. Lamento apenas a destruição de valor, toda esta ambição levou a que se destruísse o capital e a respeitabilidade de um banco que se impôs no mercado como um exemplo a seguir. A crise internacional que assolou a Europa teria muito mais dificuldade de entrar em Portugal se o BCP estivesse forte, disso não tenho a mais pequena dúvida. Mas também lhe digo, enquanto presidente do BCP só tive dificuldade de falar com uma única instituição financeira.

Com o BES.

Com o Grupo Espírito Santo. Porque percebi sempre que estava limitado pelo seu perímetro familiar, não valeria a pena falar porque o GES nunca compreenderia o projeto BCP. Uma empresa familiar vive da família e do crédito do sistema bancário, ora um fator e outro são limitativos. A família está limitada pelo seu património, não pode ir além, e o crédito bancário é caro.

Ficou surpreendido com a queda do BES?

Nunca compreendi como é que havia capacidade financeira para o BES continuar a crescer da maneira como crescia, não indo eles ao mercado com toda a transparência. Era impossível entender. A exigência de determinados rácios por parte dos reguladores europeus tornou impossível tapar o que se tornou evidente.

Em nenhum momento se zangou com Deus por tudo o que lhe aconteceu?

Não faz sentido zangarmo-nos. As coisas acontecem, é o próprio caminho da vida, o que é importante é o momento do encontro com Deus, viver para esse momento. O resto são pormenores.

Continua a viver para esse encontro?

Esse encontro significa preparar todo um conhecimento, o caminho faz-se assim.

Há pessoas que são propensas para o Mal…

Como dizia a minha tia Mores (irmã de minha mãe) todos temos umas horas de burrice por dia.

Há alguma hipótese de reconciliação com Pedro Maria Teixeira Duarte? Seria capaz de o fazer em nome da ideia de uma família comum? O senhor tem 14 netos que têm o apelido Teixeira Duarte (Sofia, a segunda filha de Jardim Gonçalves é casada com João Teixeira Duarte, do casamento nasceram 14 filhos).

Não falaria em reconciliação, estou muito bem com a família Teixeira Duarte, o meu genro é um excelente marido e um excelente pai. Não se pode pedir mais. Quando fiz 80 anos, convidei os meus compadres, simplesmente têm uma situação de saúde que lhes dificulta. Todos os meus netos estiveram, fizeram-me uma surpresa bonita. Agora, o Pedro Maria Teixeira Duarte pode não se sentir bem estando comigo, imaginou que podia controlar uma situação no BCP que estava fora do seu alcance. Logo, o problema é dele para mim, eu não tenho qualquer problema com ele.

Se fizesse hoje um banco de raiz replicaria o BCP ou faria algo diferente?

Os bancos estão obsoletos. Todos. Não tenho os dados todos, é difícil falar quando não temos toda a informação, mas se fizesse nascer um banco teria de ser uma instituição completamente diferente. E penso que há capacidade para fazer algo de realmente novo. Repare, a grande inovação do BCP foi a segmentação de mercado (tratar pessoas diferentes de maneira diferenciada) e foi o chamado cross selling (a instituição poder vender no mesmo lugar os mais variados produtos financeiros) – no mesmo espaço, no mesmo computador, entrava a informação completa de cada um dos clientes, logo as suas necessidades. E deixe-me dizer-lhe uma coisa, talvez o futuro da banca esteja em dois sinais que o BCP deu e que foram falhados.

Acontece muitas vezes quando se avança antes de tempo.

Foi isso mesmo. Um foi o store banking (o banco em ligação direta com as compras no supermercado dos seus clientes), e o active bank (o desenvolvimento do e-banking). O banco que eu faria hoje estaria mais ligado à vida das pessoas e permitiria que todas as ações dos clientes pudessem ser virtuais, sem prejuízo de uma ligação física mínima.

O seu banco teria sucursais.

Teria sucursais, mas não com 60 metros quadrados; bastavam umas quantas máquinas e uns balcões. Teria de ser um banco com grande ligação às telecomunicações, o que já antevia quando aceitei o desafio de António Guterres para entrar no capital da ONI, faz parte da história.

Porque é que hoje não há banqueiros em Portugal?

A sua pergunta insinua que um banqueiro é algo mais do que um executivo…

Não insinua, sublinha.

É o mesmo que perguntar porque não há estadistas na Europa? Se calhar há, se calhar a realidade impõe outro tipo de estadistas, se calhar vai impor que voltem a existir. Não podemos desistir de uma qualificação que implica uma qualidade de que o mundo sente a falta.

Vou alterar um pouco o rumo à conversa. Nesta casa, sente-se em casa?

Esta casa foi pensada para a família, tem quartos para os filhos e espaço para os netos. E depois foi também pensada para ter uma zona de estar para um conjunto variado de pessoas, uma casa com uma função social…

A casa de banqueiro.

A casa que recebe chefes de Estado, banqueiros de outros países e políticos que se sentaram nesta mesa aqui ao lado e se sentiram bem. Nesse sentido esta casa era mais do que a minha casa, representava um espaço que era o espaço do próprio banco a que eu presidi. Mas sinto-me em casa, até pelos muitos espaços de intimidade, muitos cantos, a salinha onde está a Assunção agora.

Assunção que numa conversa comigo…

Lhe disse que não se sentia totalmente em casa, bem sei, bem sei. Chegamos a esta idade, duas vezes quarenta, e a Assunção nunca desfrutou realmente da casa porque esta foi sempre mais uma carga de responsabilidade do que uma tranquilidade. Esta casa, é ela. Nada do que vê, nada do que é decidido não é (ainda hoje) decidido por outra pessoa que não ela. O meu irmão (Padre Agostinho), sempre que aqui vem gaba-lhe as flores.

Quando quer fugir dos outros, ficar consigo, escapa-se para onde?

Para a biblioteca. É um sítio para onde vou e o lugar para onde íamos quando Assunção tinha toda a mobilidade. Era e é o nosso sítio. Hoje, quando está ocupada ou em tratamentos, eu continuo a ir para lá.

Estou a ver a sua mãe Bernardete.

Uma boa fotografia, gosto de todas as que temos em cima do piano. São as imagens das mães, está a minha e a de Assunção, uma imagem de Nossa Senhora. Também tenho num outro lugar aqui na sala uma imagem de minha mãe de que gosto muito.

Aquela ali, não é? Está com um dos seus filhos.

Está com o Filipe, um neto que lhe fazia sempre muita festa quando ela entrava em casa. Tenho aqui a minha vida, falámos da biblioteca e também é importante o caminho para ela, um caminho que me faz lembrar a Avó Luísa, é igual ao caminho que me levava a sua casa, o Beco do Vimeiro, na Estrada de Santo António. Em determinados lugares nesta casa regresso à Madeira.

Regressa a casa.

Regresso a casa. Veja daqui o jardim. É uma grande vantagem, não preciso de sair da sala para ver o exterior, o jardim, os verdes. O meu jardim são os meus ‘picassos’. 

Quando chega a casa continua a pendurar o seu fato?

Sempre. E quando trago os pullovers também os penduro, por vezes a malha fica presa nos cabides. Faço-o, sim. E não teria dificuldade em passar a ferro, passo muito bem e sei vincar as calças. Lá em casa éramos só rapazes e tínhamos de resolver os problemas quando eles surgiam.

Onde guarda a sua Cruz de Guerra?

Juntamente com as outras. Está no armário onde estão os cartões-de-visita. Na altura pareceu-me a coisa mais natural da vida, estas coisas não se podem levar muito a sério.

Manuel Amado, seu grande amigo e camarada na guerra, dizia-me que era importante que eu percebesse que o senhor foi mesmo um herói de guerra.

O Manuel é assim. Não matei ninguém, salvei muita gente. Era alferes de engenharia, comandava o pelotão de engenharia e proibia os meus soldados de poderem imaginar que podiam estar armados; eles deviam era estar com martelos e enxadas. Tive baixas ainda assim. A minha atitude foi sempre a de salvar os que iam naquela coluna. O tempo que conta para a Cruz de Guerra é o da longa caminhada até Nambuangongo, esse é o tempo de guerra, de combate, em 1961. A minha atitude era andar muito depressa para surpreender os nativos, um grande mérito estratégico do Coronel Maçanita.

Recebeu a condecoração já civil.

Sim, tive de me mobilizar outra vez para poder entrar no avião militar (JG permanecera em Luanda) e receber a Cruz de Guerra.

Foi a segunda vez que viu Salazar.

Vira-o a primeira vez em São Bento quando, vários anos antes, decidiu receber os estudantes de Coimbra que pertenciam à Comissão da Queima das Fitas. Tem uma conversa muito particular comigo porque quer introduzir uma palavra de rigor na Queima das Fitas (JG era o tesoureiro). Enviei-lhe um relatório e contas, o primeiro até então, deu lucro.

O que o impressionou nesse encontro?

Não o imaginava tão alto. Foi muito discreto, foi pouco tempo e aproveitou o momento para fazer doutrina.   

Voltando às fotografias e às memórias. Viver também é isso, com o passar do tempo juntarmos intimamente a vida real com a transcendência, juntar o mundo dos vivos ao dos mortos.

Mas os meus mortos estão vivos, não há mortos aqui. Para todos tenho palavras, é um diálogo permanente. Nas minhas orações estão todos juntos, estamos todos juntos.

Nas suas orações está também a irmã que não conheceu e o seu sexto filho? (a irmã mais velha de JG morreu no parto e o casal JG não chegou a conhecer o seu sexto filho).

O nosso sexto filho, sim. Porque aí há uma mistura de um filho que não nasceu e a falta de acompanhamento da minha parte, falhei. Assunção teve de ser hospitalizada de urgência e eu tinha uma conversa complicada com o ministro das Finanças. Eu era presidente do Atlântico e o Governo queria intervir no Atlântico, achava que era um assunto muito importante, não me apercebi de que o assunto era grave com a Assunção e o nosso filho. Ela merecia que eu tivesse mandado o ministro às malvas, merecia que eu tivesse estado com ela. Em relação à minha irmã o assunto é mais de memória de minha mãe, um assunto recorrente pois não tinha nenhuma filha (JG tem mais três irmãos homens).

Tem cinco filhos e quantos netos?

Vinte e três. Eles lá sabem, mas talvez me fique por aqui, avô de 23 netos.

Uma casa cheia ao fim de semana.

Não vêm todos ao mesmo dia e à mesma hora, mas de vez em quando tenho uma enchente. Então quando o meu irmão vem aqui celebrar…

Continua a ser especial ver o seu irmão Agostinho fazê-lo?

Muito especial. Esteve aqui há dois domingos, celebrou e almoçou connosco. Dizia com piada que antigamente era mais fácil, mandávamos as crianças fazer silêncio, agora querem conversar sobre coisas sérias.

Algum dos seus netos começou a falar aos quatro anos? (JG só disse a primeira palavra com essa idade).

Não. Começaram a falar no seu tempo próprio.

Qual foi a primeira palavra que o senhor disse?

Lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje. Disse ‘dói’. Estava doente e doía. Depois falei como se sempre o tivesse feito.

Agradece a Deus a doença que o imobilizou aos 17 anos? A sua vida não teria sido a que foi.

Não sei o que teria acontecido, certamente que teria sido diferente. Teria ido para o Técnico e não para Coimbra… As pessoas à minha volta estavam preocupadas, fiquei paralisado durante umas semanas, fui para o norte da Madeira convalescer e tirei muito partido desse ano sabático. Pensei na primeira viagem (e única até então) que fizera ao continente. O meu tio Jorge (de quem herdei o nome) levou-me às coisas mais diversas de Lisboa, o Viaduto Duarte Pacheco, a Fonte Luminosa, o Técnico. Pensei no que tinha visto, e pensei que me apetecia ir para uma universidade, o Técnico não o era, fui então para Coimbra.

Não teria conhecido Assunção se tivesse ido para o Técnico.

Talvez não. Um namoro que se sedimenta já no Porto e que nasce de um encontro instantâneo numa estação de comboios (Estação de São Bento). Eu vi-a e percebi que era a mulher da minha vida, ela não me viu. Mas ela existiu sempre. Mesmo antes de a conhecer, tudo estava reservado para ela.

Imagina a sua vida sem ela?

Não faz sentido pensar nisso.

Não a levou a fazer a viagem prometida a Veneza.

Já não a vamos fazer. Mas a outra viagem será bem melhor, se Deus quiser a melhor de todas.

Infinitude.

Infinitude.  

Defini-o na sua biografia como um homem em trânsito. Em que parte da viagem está?

Estou cansado como sempre estive. Estava cansado em pequeno em casa porque a minha mãe me encarregava de determinadas tarefas, refilava imenso. Estava cansado na universidade, na guerra, nos caminhos de ferro ou nos estaleiros, na vida de banco. O cansaço é o meu estado normal. Foi uma atitude que sempre tive. A Assunção recorda sempre o que lhe respondia quando ela me perguntava se vinha tarde. Vou tarde, venho cansado, mas contente.

Nunca se deitaram zangados.

Isso foi sempre sagrado, nunca aconteceu, nunca poderia acontecer.

Valeu a pena ter vivido?

Vale, vale. O meu pai dizia-me que Deus tinha feito tudo bem feito, especialmente a morte. Gosto muito da vida, mas a morte virá em seu momento, no momento que tiver de vir. 

luis.osorio@sol.pt