Foi um sucesso de público e da crítica (premiado nos festivais de Berlim e de Sundance, entre outros) e é o filme brasileiro indicado para o Óscar. Em Que Horas Ela Volta?, o quotidiano da empregada interna Val (Regina Casé) é virado do avesso com a chegada a São Paulo da filha Jéssica (Camila Márdila), oriunda de Pernambuco, para estudar na universidade.
As novelas brasileiras são muito populares em Portugal e noutros países, mas o cinema já não tanto. Porquê?
O cinema brasileiro é bipolar. Tem dois tipos de filmes e o meu é um terceiro tipo. O que faz ingressos no Brasil são as comédias populares ligadas a elencos televisivos e linguagem televisiva. São filmes que fazem cinco milhões de espetadores e você não lembra mais na semana seguinte. Não são exportados, são locais. E há o outro tipo, de arte. Ganha prémios em festival mas faz 10 mil espetadores. E a coisa no meio são poucos filmes, são os que acabam fazendo sucesso fora, mas é um a cada dez anos.
Demorou quase 20 anos a fazer este filme. Como conseguiu manter a energia para concretizar esta ideia?
Porque se foi renovando. E porque o tema continua importante. De início não quis fazer porque não era madura. Seria o meu primeiro filme e eu não sabia fazer. Fiz um menor, foi um teste. Aí voltei para este, não consegui, fiz outro, mas nunca perdi o interesse. A única coisa que me poderia ter desanimado era se tivesse existido um filme que falasse dessas coisas. O Som ao Redor, do Kleber Mendonça Filho, mexeu muito comigo, é muito importante, e é muito parecido, fala do abismo social no nosso contacto diário, mais no âmbito da segurança, o meu é no âmbito doméstico. Este é de facto um filme de maturidade, reuni uma equipa que nunca tinha conseguido. A fotógrafa é uma uruguaia que fez A Mulher Sem Cabeça, de Lucrecia Martell. O diretor de arte tem 25 anos, é um menino que me deu muita condição para chegar onde cheguei. E a montadora, a Karen Harley, é a melhor do Brasil.
Há a questão do género. Foi insultada por dois colegas de profissão, Lírio Ferreira e Claudio Assis. O machismo é forte no Brasil?
É em todas as sociedades, mas lá talvez um pouco mais forte. Não sabia que o filme tinha essa questão. É um filme de mulheres, mas não era consciente. O filme foi trazendo essa conversa porque fez sucesso num nível que até hoje só um tinha feito. É o mesmo que dizer que para um clube do Bolinha entrou uma mulher. E não foi confortável para ninguém.
Não vê o seu cinema como feminista?
Acho que não. Mas talvez vire (risos), porque não era algo que me pegava mas agora está pegando.
A questão das empregadas domésticas não está desatualizada?
A realidade da Val, que é a interna do filme, está acabando por causa de uma lei que saiu há uns três, quatro anos, a PEC das empregadas. Até há uns anos, 22% das empregadas dormia nas casas dos patrões. Mas ao mesmo tempo o filme traz a Jéssica, que está mal começando. Está a falar de passado e de futuro.
Continua atual?
Sim, até porque todo o mundo tem empregada, deixou foi de dormir em casa.
Pobres e ricos e um grande buraco no meio.
Além disso tem a questão da preguiça, não é? Um historiador importante chamado Sérgio Buarque de Hollanda escreveu no livro Raízes do Brasil – disseram-me para não falar disto em Portugal – que a colonização portuguesa foi em cima de um lema, o ócio em vez do negócio. O português se divertia, ou estava ali para pegar o ouro ou para trepar com as índias. Não havia do português a intenção de construir uma nação e isso ficou. O português foi embora, mas para o brasileiro é chique ficar sentado e dizer ‘Me traz isso, me traz aquilo’. Coisa que num país mais adiantado não é chique, é doença. Além da questão do abismo social há uma valorização à preguiça. Você pode ter um empregado que o ajuda, mas isso não quer dizer que ele vai fazer 100% e você 0%. Isto é muito brasileiro.
Também teve uma ‘babá’. Como foi a experiência?
A Dagmar entrou na minha casa com 17 e eu com 7. Ela não teve vida. Nunca namorou, nunca casou, não teve filho. Ela se aposentou e hoje visita a família no norte. Quer dizer, não houve evolução, nem de educação nem de nada. Do ponto de vista dela não acho que foi bom, do meu foi. Tinha um pai e uma mãe meio autoritários, então ela era um pouco como a Val, ela defendia-me, era um meio de campo, uma terapia. Mas não acho bom, ter alguém que não tem chances de viver a vida dela.
Como é trabalhar com o digital? Que vantagens traz?
Eu ensaiava as cenas. Agora eu solto o ator. Todo o dia de manhã eu problematizo. Pego no roteiro e vejo se está ruim, vamos ver de novo, trago a coisa para ficar muito fresca. Aí o cara faz um take e eu digo ‘Não corta! De Novo.’ Aí ele entra num estágio quente em que começa a fazer coisas que nem sabe que está a fazer. Exemplo: quando a Regina entra para falar que a filha passou o exame do vestibular (acesso à universidade): ela está tão feliz que está nervosa, está feliz mas ao mesmo tempo sabe que perdeu o emprego. E o gesto que fez, foi buscar ao avô, que era pernambucano. Ela é do Rio, mas a personagem é de Pernambuco. Então, de repente, coisas que ela não via desde os cinco anos aconteceram no corpo dela. Na minha relação com o ator, o digital permite chegar em zonas desconhecidas, descontroladas. Com o digital eu faço enormes e tiro o filet mignon. Fiquei mais livre. O montador é que sofre…