Como descobriu que estava morto?
Exatamente assim, do jeito que está escrito. Me meti numa confusão com um restaurante debaixo de casa, que estava fazendo barulho. Joguei um saco de lixo neles e eles foram na delegacia prestar queixa. E eu fui fichado, pelo crime de ameaça e arremesso de objeto. O inspetor da Polícia levantou minha ficha e viu no sistema que existia a ocorrência da minha morte. Me telefona um dia de manhã e me acorda com perguntas estranhíssimas.
Perguntou-lhe se estava morto. Como é ouvir uma pergunta dessas?
Parece uma daquelas perguntas que você escuta num filme ou romance de ficção policial: onde você estava no dia 14 de Julho de 2008?
Sabia?
Pesquisei. Eu tinha uma ideia de que estava pela Europa em julho. 2008 foi o ano em que me separei, tive um divórcio, fiquei dez meses na Europa. Mas tive que procurar nos meus e-mails a data 14 de julho.
Percebeu logo aí que tinha matéria para um romance?
De início não, acho que fiquei mais assustado, fui adiando, não caí dentro da história, demorou um tempo para eu ir no lugar, contratar um detetive, me envolver com os aspetos da história.
Tudo isso é, então real.
Sim (risos).
Porque quis investigar? Sabia que estava vivo, podia ter sido um erro burocrático…
Porque fiquei obcecado, não saía da minha cabeça. Os meus processos criativos sempre começam com obsessão. O Nelson Rodrigues tem uma frase que eu adoro: ‘eu sou uma flor de obsessão’. Eu também sou. Gosto de cultivar essas obsessões, os meus romances saem disso. Há um tema de que não consigo fugir, depois há a vontade de ler um livro sobre esse tema, que não existe, e aí eu vou e escrevo o livro. Ou tento escrevê-lo. Nesse caso era um assunto bastante pessoal e complicado para mim. Estar morto.
No Brasil está também a lançar um filme, A Morte de J. P. Cuenca, baseado neste roubo de identidade. O que veio primeiro? O filme ou o livro? Ou surgiram os dois ao mesmo tempo?
Primeiro veio o livro, depois o filme. Mas nos últimos três anos posso dizer que os dois processos decorreram em paralelo e se alimentando. Teve coisas que eu consegui para o filme investigando para o livro, como tudo o que se refere ao detetive. E depois tem um momento em que já se mistura tudo. Mas é bom dizer que nem o filme é uma adaptação do livro, nem o livro é uma adaptação do filme. Eles são obras complementares. Começam muito parecidos e depois abrem. Quase como se um fosse a coxia, os bastidores do teatro do outro. São dois palcos opostos. Como se um construísse nas margens, nas brechas do outro. Acho que a experiência de ler o livro e depois ver o filme é diferente da experiência que você tem quando lê um romance de ficção e vê um filme que é uma adaptação dele. Tem coisas que realmente não estão sendo ditas ou que até se contradizem. Tem ruídos.
O livro é lançado cá antes de ser editado no Brasil. Porquê?
A editora que o vai publicar no Brasil é um selo que ainda não existe. O meu vai ser um dos primeiros livros desse selo novo e o planejamento editorial vai ser só para o ano que vem. Mas como estava pronto e surgiu esta residência literária em Óbidos e a participação no Folio, conversei com o Zeferino [Coelho, editor da Caminho, chancela que publica o livro em Portugal] e resolvemos publicá-lo primeiro aqui. No Brasil sai em março do próximo ano.
Não se podem vender livros editados em Portugal no Brasil mas não haverá risco de existir tráfico livreiro?
Chega pouquíssima coisa. O que não posso é dar entrevistas sobre o livro lá. Mas tem umas pessoas que conseguiram contrabandear. Me atrai essa coisa do livro ser bem difícil. É tudo tão fácil, está tudo tão disponível… Mas teve gente que veio cá para o Fólio e levou.
Logo a abrir o livro há uma citação do Machado de Assis, de Brás Cubas, provavelmente o morto mais famoso da literatura brasileira. Mas este não é o mesmo tipo de narrador morto. São mortos diferentes…
Talvez o meu morto seja um zombie. O que eu roubo do Brás Cubas é justamente o que está na epígrafe, é essa sinceridade dos mortos. Eu não poderia falar da minha cidade, de mim mesmo, dos meus círculos sociais, afetivos, profissionais, literários, sem a sinceridade de um morto. Normalmente os escritores de ficção criam alguns artifícios para se proteger, ou proteger o leitor, mas, neste caso, eu só podia contar esta história usando o meu nome e a minha pessoa. Porque os documentos [da sua suposta morte] existem e eu quis usá-los no livro. Não poderia criar uma personagem. Quer dizer, criei uma personagem, que sou eu. Sou uma personagem aqui, falando com você, e era uma personagem também enquanto almoçava no restaurante…
Há o João Paulo escritor, o João Paulo personagem, o João Paulo morto… Nunca se sabe muito bem onde acaba a realidade e começa a ficção. Mas a investigação é real…
É. Eu não gosto de traçar uma linha muito forte entre o que é o real e o que não é. Em nenhum momento: nem na vida, nem neste livro em especial. Até porque a tónica do séc. XXI, para mim, é essa crise do real. A realidade consegue ser muito mais absurda e ficcional do que a ficção, mais até que os futuros narrativos ficcionais. Está cada vez mais difícil escrever romances de ficção. Todos os colegas concordam. Porque a realidade consegue ser muito mais inverosímil, fantástica, do que o que está dentro do romance. Neste caso, isso se vê nos documentos. Quando as pessoas veem os documentos, que são reais, a primeira coisa que elas falam é: você está inventando isso. É a reação primeira ao ler esse livro: você fez esses documentos, eles não existem. Só que os documentos existem, você vai lá na delegacia, no Rio de Janeiro, e esse inquérito está aberto, nem foi fechado. São fotocópias. Peguei os que achei mais interessantes.
Com esta realidade torna-se difícil ficcionar?
O que eu tento fazer é não colocar a questão ‘o que é, exatamente, nesse livro autobiográfico e o que não é?’. Até porque muitas vezes a gente vive mais as coisas que escreve do que as coisas que aconteceram. Eu tenho lembranças vívidas de coisas que não aconteceram e que eu conto como se fossem verdades absolutas. E outras coisas aconteceram e eu entro em estado de negação e esqueço. O Waly Salomão falava que a memória é uma ilha de edição. Para mim a realidade é uma ilha de edição. A gente edita a nossa vida. O que me interessava nesse livro era criar uma experiência para mim e para o leitor. E para o espetador do filme.
Em que sentido?
Quando você se coloca a escrever um livro desses até que ponto você está provocando coisas na sua vida? Até que ponto você está performando para escrever? Eu fiz um documentário com uma câmara atrás de mim e eu fazendo de eu. Não tem script. Até que ponto eu estou sendo eu e não estou sendo? Porque eu sou um autor, ator, enceno. É tudo muito contaminado. Mais do que separar prefiro pensar: é uma experiência nova. Para mim e, espero, para o leitor, com quem a estou a compartilhar. E a experiência é verdadeira. Eu quero que ela seja verdadeira no momento em que a pessoa está lendo, no momento em que eu estava escrevendo, no momento em que eu estava performando naquele filme, no momento em que as pessoas assistem o filme. Quero que aquilo tenha alguma chama de verdade, que não é uma verdade factual. Ou pode até ser uma verdade factual mas o que eu busco é uma verdade mais profunda que simplesmente isso.
Não é possível ter as pessoas a ler e a estabelecer paralelos entre o João Paulo Cuenca, o João Paulo Cuenca escritor e o João Paulo Cuenca personagem? A constatarem: então ele vai a festas, toma drogas…
Isso acontece o tempo inteiro. E na verdade esse romance e esse filme também são fruto de um incómodo profundo que me provoca a mediatização da figura do escritor. Nos últimos dez anos eu falei sobre os meus processos criativos, sobre a construção dos meus livros, para muito mais pessoas do que aquelas que leram efetivamente os meus livros. A impressão que tenho é que muitas vezes as pessoas estão comprando o discurso que o escritor fez em festas literárias mais do que a própria obra do escritor.
No Brasil há uma grande indústria à volta dos festivais literários, com cachets elevados…
É uma loucura. Não é ruim, ganhamos dinheiro e conseguimos alguns leitores. Só que isso é colocar o escritor numa posição de personagem e fazer isso virar parte do seu dia a dia. Só que a imensa maioria dos meus colegas são péssimos atores. Péssimos performers, falam mal, não têm pausa… São um saco. São escritores. Não precisam ser bons atores. O que eu quis fazer foi transformar esse incómodo numa coisa ainda mais incómoda. Pegar essa exposição, essa performance, e a elevar a um máximo desagradável. O filme e o livro são isso: ai vocês querem saber como é o meu processo? Querem saber como é ser um escritor? Então toma, toma esse negócio aí, toma esse livro, toma esse filme e não me pergunte isso nunca mais. É um pouco antipático, mas é uma resposta. Precisei fazer algo com isso.
No livro, aliás, diz que para os festivais leva uma fala já preparada, sempre a mesma. Já se perdeu a autenticidade?
Já se perdeu a autenticidade. E o que eu acho mais perigoso é que os escritores colocam a literatura como algo que tem um sentido ético em si, que tem uma gravidade moral, que é útil, educativa. Mas a literatura é uma forma de arte. Ela não tem que ser nada. Aliás, o grande poder dela é que ela é absolutamente inútil. Eu me pego brigando internamente contra esse discurso apesar de muitas vezes proferi-lo.
É também um romance de resistência? A esse lado performativo do escritor e ao que está a acontecer no Rio e na sociedade carioca? Ou de desistência, como escreve no final?
Não sei dizer. Talvez sejam sinónimos. Desistência sim, de jogar um jogo que essa cidade pedia para eu jogar e que eu desisti de jogar. De certa maneira o livro é uma cerimónia de adeus.
Mudou-se para São Paulo.
Sim, já fui para São Paulo e talvez saia do Brasil em breve. Para não sair desse mundo. Essa sinceridade corrosiva desse narrador, é como se ela fosse detonando todos os círculos à sua volta, como se fosse criando um espaço de erosão ao redor desse narrador. Então, eu estou queimando muitas pontes. No livro inteiro.
As pessoas vão levar as críticas a sério?
É… Não sei. Espero que sim e espero que não.
Há um ataque quase pessoal. Usa um eu que, na verdade, podem ser muitos…
É. Tem uma expressão no Brasil que é ‘vestiu a carapuça’. Aqui se diz isso? Então… Quem vestir a carapuça… Existe essa visão sobre o mundo, sobre as coisas do Brasil, sobre o Rio de Janeiro em especial, mas eu acho que a carapuça mais dolorosa é a minha. Esse não é um narrador daqueles heroicos, puros e moralistas com os outros mas que se preserva. Ao contrário: o personagem mais lamentável, patético, deprimente, desprezível e cruel com ele mesmo é o narrador. Ele não podia ser cruel com o Rio de Janeiro, com a imprensa do Rio de Janeiro, se eu não usasse a mesma regra comigo. Aí eu estaria sendo desonesto.
Que jogo era esse que a cidade lhe pedia para jogar e que fez com que a abandonasse?
É um jogo que tem um toma lá dá cá político, tem um toma lá dá cá de troca de favores, tem um toma lá dá cá de não dar certas opiniões, tem um toma lá dá cá de ser amistoso, de ficar quieto nas horas que tem que ficar quieto, de não comprar certas brigas, de fazer alianças políticas para alcançar certas coisas, de basear suas relações pessoais em interesse ou em aparência, de viver num círculo de aparências, num lugar onde as pessoas são extremamente infelizes mas querem parecer que são ultra felizes. Então as mulheres se vestem como se fossem para um casamento para tomar um drink em casa de não sei quem num sábado à noite e todos ficam se elogiando, falando dos seus vinhos, dos seus iates, das suas viagens para a Europa. Mas isso está tudo escondendo uma falta de relevância, uma desgraça e um vazio tremendo. Nessas rodas não se fala de nada a não ser da vida dos outros e sobre essa competição de que falo no livo, de quem é mais bem sucedido, de quem tem mais.
E no meio disso a cidade lá fora, como na festa que descrevendo, pega fogo.
É. Há tiros e as pessoas aumentam o som da música. É um dado absolutamente biográfico do romance. Eu já estive numa festa em que aconteceu exatamente isso.
Um tiroteio lá fora, sobe-se o som e a festa continua…
Sim. Abre mais uma garrafa de prosecco e segue.
É a rotina?
É. No Rio de Janeiro a gente vive o que eu costumo chamar um hedonismo de guerra. O tipo de festa que se tem quando a cidade está sobre bombardeio e todo o mundo pode morrer a qualquer momento. Não acho que tenha alguma coisa parecida hoje em dia na Europa e muito menos em Portugal. Porque se você mora na favela você realmente pode ser morto a toda a hora, é corriqueiro que tenha um cadáver na sua esquina. Se você mora no asfalto é bastante mais seguro mas, ainda assim, o tiro pode acabar em você. A violência, ou a expectativa do desastre, está muito presente na vida do brasileiro e do carioca. É uma sociedade muito violenta. Muito violenta. Só que nós fingimos que isso não existe. Fingimos, mas a gente recalca. E como é que você recalca o medo?
Para continuar a viver é preciso esse fingimento?
Sim. E aí você tem todas essas festas como se não houvesse amanhã. Porque muitas vezes não há mesmo amanhã. Então você se droga, você bebe, você trepa. E o ápice disso é o carnaval.
São Paulo já não é assim?
Por incrível que pareça, São Paulo é um lugar onde você tem mais espaço do que no Rio de Janeiro. Mais espaço para ser, mais espaço de liberdade. Eu não sou uma pessoa feliz. A felicidade, como diria o Bob Dylan, não é uma das minhas prioridades. O Rio de Janeiro te obriga a ser feliz. Você não pode ser triste ou estar triste. Você não pode sair, se dar ao luxo de sair não estando, como os cariocas falam, de boa. Foda-se de boa. Eu não quero ficar de boa. Não dá para ficar de boa no Rio de Janeiro. Talvez não dê para ficar de boa nesse mundo. Muito menos no Rio de Janeiro. Eu abandonei completamente esse estado de coisas.
Não vai voltar ao Rio?
Não, imagina… Eu nunca mais volto a morar lá. Nunca mais.
Tudo isso contradiz a ideia de que o Brasil está em rápido crescimento, a pacificar-se. Destrói o ideal carioca. O que aliás está bem explícito nos trechos que cita do texto que publicou na revista Granta quando a revista publicou prosas daqueles que pontou como os melhores jovens escritores brasileiros.
O livro inclui um trecho de um conto da Granta. Quando eu comecei a escrever esse conto, era suposto ser um romance distópico em que eu olhava o Rio de Janeiro dos anos 10 na década de 20. O meu narrador estava lá na frente. Como quando o Fitzgerald fala no Crack-Up: ah nós éramos tão ingénuos antes do crash da bolsa, olha como a gente viveu os loucos anos 20… Eu imaginava que ia demorar ainda uns dez anos para o Rio quebrar, para o Brasil quebrar.
Achou que ia aguentar até aos Jogos Olímpicos…
Exatamente. Só que a coisa quebrou muito mais rápido do que eu imaginava. Escrevi sobre os franceses comprando barracos na Favela do Vidigal e pintando de branco, para igualar Mikonos, uma coisa de ficção científica. Um ano depois, isso está acontecendo.
O morro valorizou.
É. Bem, agora já está começando a cair. Talvez o livro, daqui a uns anos, seja uma crónica disso. Eu falo muito desse boom económico, que atraiu europeus, escrevo até sobre os portugueses nas festas no Rio de Janeiro, teve um momento que só tinha portugueses nas festas do Rio de Janeiro. Tem um parágrafo no livro que é uma citação do Gatsby, onde o Fitzgerald fala dos ingleses nos jardins das festas dos americanos, porque o dinheiro estava nos EUA. Senti a mesma coisa no Rio de Janeiro. Essa crença não é só no económico. É uma crença numa certa centralidade. O Rio é o centro ideal. É a cidade maravilhosa. É um lugar onde todo o mundo no mundo quer estar.
Para ser feliz.
É. Para ser feliz. Mas na verdade o Rio é um dos lugares mais desgraçados do mundo. É impossível ser feliz no Rio de Janeiro. A não ser que você seja um alienado idiota, que é o que as pessoas costumam ser.
Do calçadão há vista para o morro.
É. E depois, atrás do Maciço da Tijuca, você tem o Rio real, todos aqueles bairros horrorosos, sem nenhum planejamento urbano, não tem nem calçadinha de Ipanema para disfarçar. Você vai para lá e é subdesenvolvimento total. Mas não é esse o imaginário da cidade, nem o que passa no jornal. Costumo chamar o jornal O Globo o jornal da zona sul, que é uma parte da cidade que é a parte da elite. E o jornal só cobre isso. É um jornal que se diz nacional mas só cobre o espaço que vai da Barra da Tijuca até ao Flamengo.
Não vai para o norte?
Não. Não existe. Nem a festa lá existe, nem o crime existe.
Mas a ideia que passa é que as favelas estão pacificadas, que as pessoas da zona sul e os turistas sobem os morros para irem a festas, aos bailes funk… É falso?
Hoje em dia você tem favelas pacificadas pela UPP – a Unidade Pacificadora da Polícia Militar. Eles entram na favela como coronéis com os seus jagunços. É uma coisa meio século XIX. Eles impuseram uma lei, que não é lei porque não está escrito em lugar nenhum, que o baile funk está proibido. A principal manifestação cultural daquelas pessoas é o funk. Aliás, a última coisa que aconteceu de relevância cultural no Rio de Janeiro é o funk. E é proibido. Só que se você é um branco que aluga uma casa no topo do Vidigal, no topo de uma favela, para fazer uma coisa de música eletrónica, até pode tocar funk no meio – você pode. Aí os brancos vão no baile dos brancos no topo da favela. Só que os favelados não podem fazer o baile deles, porque está proibido. Mas como tem UPP aí o branco pode subir e vai no baile dele a achar que está vivendo uma experiência super radical, no topo da favela. Entendeu? É patético. É tudo um faz de conta e aquelas pessoas estão vivendo o que na prática é um regime de excepção militar. Hoje em dia quem vive em favela no Brasil vive sob uma ditadura militar. Pronto.
Sem panos quentes.
Não. É isso. É regime militar. A Polícia no Rio de Janeiro, por dia, mata duas pessoas, dois civis. Os números por ano, no Brasil, são de dezenas de milhares de civis assassinados pela Polícia. É assim. E tem uma naturalização, tem uma normalização dessas mortes. É o que eu falo no livro, que numa hora uma personagem na festa fala e é ridicularizado por todo o mundo. É quase como se eles não fossem seres humanos. Como se fossem um outro tipo de humanidade de que a gente não precisa sentir pena.
Não são vistos como pessoas como nós?
Não. No mês passado teve uma série de crimes de policiais atirando em crianças, na favela. Tiros pelas costas, na cabeça. Não era uma troca de tiros, era execução. As crianças eram todas negras. E mal saiu na imprensa. Escrevi um artigo para a Folha [de São Paulo]: imagina como seria a reacção dos jornais se fosse uma criança branca em Ipanema que levasse um tiro na nuca de um policial militar. Que aconteceria com o Brasil? Se tivesse numa semana três crianças brancas de Ipanema levando tiros nas costas? Sem fazer nada, a criança estava com um celular na mão, não estava com um fuzil. Que é que acontecia no Brasil? O Presidente ia na televisão falar, as forças armadas iam ocupar as ruas. Mas não, são negros, são favelados.
Sobre tudo isso escreve no livro…
É o pano de fundo do romance. Porque o romance se passa na cidade…
Cidade que é personagem do romance.
Sim, é personagem. Mas o livro não é só isso. Isso está no livro. Não tem como não estar. Não posso falar sobre o Rio de Janeiro sem falar disso. Ainda mais falando de um sujeito negro que morreu doente num prédio ocupado que precisou ser desocupado sabe-se lá como para construir um novo prédio. Aquela área do centro do Rio de Janeiro, [Lapa] tem um grande peso histórico. O Presidente Pereira Passos, no princípio do século XX, detonou, aplainou o centro do Rio de Janeiro, onde moravam dezenas de milhares de pessoas, para construir a Avenida Rio Branco, que era uma avenida francesa, tipo Avenida da Liberdade. Mas as pessoas foram lá fundar favelas. Aí, para fazer as Olimpíadas, o nosso perfeito, cem anos depois, faz a mesma coisa. Uma política de reformas urbanas que privilegia grupos de empreiteiros e construtores, em detrimento do interesse da população. Que muitas vezes ocupa uma casa há 30 anos e, um dia, acorda com uma marca na porta e tem que sair. E a prefeitura, na maioria das vezes, não dá nada em troca. O centro do Rio de Janeiro, a área do Cais do Porto, foi o maior entreposto de escravos na virada do século XIX. É um cemitério de escravos, tem escravos ali enterrados até hoje. O Rio de Janeiro é como se fosse o Poltergeist. Eu estou andando num cemitério de escravos. E ninguém fala disso. E aí o perfeito gasta bilhões de dólares fazendo um museu do Calatrava chamado Museu do Amanhã, exatamente na área onde isso aconteceu. Não tem nada sobre a escravidão. Tinha que ter o Museu da Escravidão. Tinha que ser um monumento gigantesco. O Brasil teve dez vezes mais escravos do que os EUA. E não se fala nisso. Tem uma Disneyland ali em cima, na favela, para os turistas que, com sorte, não serão assaltados. Em baixo, é uma máquina de torturar carnes.
No livro critica tudo isto que se vive hoje no Rio. As outras personagens queixam-se de que é um chato comunista. E os leitores? Não poderão perguntar-se de que se queixa, visto que é branco e privilegiado, um escritor que viaja pelos festivais?
É. Mas acho que talvez eu não tenha estômago para conviver com essas coisas. Se tivesse, talvez eu fosse um cidadão carioca mais bem adaptado, tomando minha água de coco, correndo no calçadão com um crachá da Tv Globo. Não consigo. Parei de querer fazer certos pactos, o principal deles sendo você não pensar e não olhar para o que está acontecendo em seu redor. O brasileiro, e o carioca em especial, é um solipsista, aquela figura do cara para quem só existe o que ele vê. Se desvia o olhar, deixa de existir. Desde a criança que está pedindo um moeda na rua até transgressões escrotíssimas de ética e moral. Porque assim ele consegue ser gente boa. Porque o carioca é um gente boa. Só que é um gente boa que é um canalha, um cretino fundamental. Mas é gente boa. Te dá um tapinha nas costas e te esfaqueia por um lado, enquanto te abraça. O Cristo Redentor – é horrível aquela estátua – é um símbolo perfeito do Rio de Janeiro porque é um homem de braços abertos que nunca te abraça. Ele parece que vai te abraçar. Você olha e diz: ah tem um homem que vai me abraçar, gigante, ali no topo. Mas ele não vai te abraçar nunca.
Tal como o boom imobiliário que houve no Brasil, houve também um grande boom literário. O Brasil foi convidado da Feira de Frankfurt em 2013, a Revista Granta dedicou uma edição à novíssima literatura brasileira. Mas este ano parece que o entusiasmo mundial já está a baixar. Foi também uma falsa euforia?
Sim, mas isso era bem previsível. No Brasil não há políticas públicas de médio e longo prazo. No Brasil é tudo a curto prazo, para você receber os dividendos políticos disso no dia de amanhã. Mas você não pode fazer uma política de difusão da literatura e da cultura brasileira no exterior que não seja de longo prazo. Se você está patrocinando tantos livros na Feira de Frankfurt, no ano seguinte tem que patrocinar o mesmo número ou mais. E por aí vai. Mas no Brasil não se pensa no médio e longo prazo, não há uma política que fique. Porque como o Estado é patrimonialista, a política, ou o plano de incentivo, é de quem está lá. A pessoa sai, entra outro, e vai logo trocando de nome. É uma espécie de gangô (sobe-e-desce). Então era previsível. É muito difícil difundir literatura brasileira fora do Brasil, até em Portugal.
Mas por que é assim tão difícil se é tudo literatura em língua portuguesa?
Porque o português é uma língua absolutamente periférica. Nós não somos uma língua central. Então tem uma série de barreiras que nós que escrevemos em português temos de ultrapassar. Acho ridículo que não exista, por exemplo, um instituto único, da língua portuguesa, brasileiro e português. Não tem. Como é que não temos um instituto para difundir a cultura, os autores, de língua portuguesa para o mundo? Como é que o Brasil e Portugal não têm uma política comum nesse sentido? E fica-se discutindo Acordo Ortográfico? Porque o cara que vai reeditar o livro vai ganhar um dinheirinho? Porque o gramático vai ganhar um dinheirinho ao reeditar o dicionário dele? Ou porque o fulano no jornal vai reclamar porque trocou uma letra? Vamos falar de política global? De ser um ator global na cultura do mundo? De pegar nessa língua e botar no lugar que ela merece? Porque de toda a literatura que existe, os maiores autores que já li até hoje estão na língua portuguesa. E não falo isso por patriotismo, que eu não sou um patriota. É mesmo a minha opinião. Mas a gente fica da picuinha, tira o C mudo, bota o C, somos colonizados pelo Brasil, ai os portugueses…