Mas a baleia tinha outros planos. Nadando em direção ao navio, provocou um choque frontal que quase derrubou os homens no convés. O casco começou a meter água. Não satisfeito, o animal voltou à carga, com a cabeça meia fora de água e com o dobro da velocidade, “como se estivesse transtornada com raiva e fúria”, nas palavras do primeiro imediato, Owen Chase. Atingiu o Essex em cheio a bombordo, afundando o navio.
Para a tripulação, que se recolheu nos pequenos baleeiros, o martírio ainda estava a começar. Seguiram-se três meses de luta pela sobrevivência, de fome, sede e calor intolerável, em que foi preciso recorrer até a atos de canibalismo.
Uma das vítimas e testemunhas de todo este sofrimento humano foi Thomas Nickerson. Nickerson, que embarcara com 14 anos e tinha apenas 15 quando o episódio sucedeu, registou anos mais tarde a história do Essex e da sua tripulação. Em 1876, enviou o manuscrito de 80 páginas a um escritor que o visitara, mas o relato foi passando de mão em mão e ficando esquecido, até à sua descoberta em 1960 e publicação (após ter sido autenticado) 20 anos depois.
Testemunha relutante
No Coração do Mar, o filme de 111 minutos de Ron Howard (realizador de Apolo 13 e Uma Mente Brilhante) que estreou na quinta-feira em Portugal, começa justamente com a visita de um escritor a Thomas Nickerson. Esse escritor é nem mais nem menos do que Herman Melville, que de facto se baseou no ataque deliberado de um cachalote ao Essex para escrever a obra-prima da literatura americana Moby Dick.
Quando Melville o visita, Nickerson, o último sobrevivente do Essex, encontra-se no ocaso da vida e dedica-se a construir barquinhos dentro de garrafas (as quais, de resto, não lhe faltam, pois é um bebedor inveterado). Profundamente traumatizado, de início recusa falar sobre o assunto, mas acaba por ceder à insistência do escritor e assim aliviar o fardo que carrega. Segue-se a história de Owen Chase (Chris Hemsworth), o calejado, destemido e competente primeiro imediato, e de George Pollard, o inexperiente capitão, cujo encontro vai produzir momentos de tensão e mesmo de conflito aberto.
Depois de atravessarem uma tempestade de mau augúrio e de verificarem que no seu destino já não restam baleias para pescar, os homens ouvem falar de um local remoto repleto de cetáceos e decidem partir em busca de lucro. Antes do gás ou do petróleo (e obviamente da eletricidade), o óleo de baleia era o principal combustível usado para iluminação. Mas havia também a carne, o ambergris (ou âmbar cinza), que fazia os perfumes conservarem o cheiro durante mais tempo, ou as barbas do animal, indispensáveis para os espartilhos das senhoras – o próprio óleo, de resto, tinha outros usos além da iluminação, nomeadamente na lubrificação das maquinarias dos primórdios da era industrial.
42 gramas de pão por dia
O filme de Ron Howard, que junta em proporções equilibradas uma narrativa contada à boa maneira antiga e efeitos especiais de última geração, baseia-se por sua vez na obra homónima de Nathaniel Philbrick. Vencedor do National Book Award de 2000 para não-ficção, No Coração do Mar faz uma reconstituição criteriosa das circunstâncias do naufrágio e da odisseia dos homens de Pollard e de Chase.
“Uma semana a comer apenas quarenta e dois gramas de pão por dia deixara-os ‘praticamente incapazes de se arrastarem pelo barco, e somente com força estritamente necessária para levar o naco minúsculo às nossas bocas’. (…) Nessa noite o primeiro imediato teve um sonho vívido. Acabara de se sentar para saborear um ‘magnífico e rico repasto, onde havia tudo o que o palato mais refinado pudesse desejar’. Porém, assim que estava prestes a dar a primeira dentada, ‘despertei para as duras realidades da minha situação’. Acometido por uma espécie de loucura pelo sonho que tivera, Chase começou a roer o revestimento de pele de um remo e constatou que não tinha força nos maxilares para penetrar o couro duro e cozido pelo sal”.
O livro de Nathaniel Philbrick não se resume, no entanto, a um relato das misérias dos náufragos do Essex. Faz também um retrato do universo da caça da baleia, atividade que florescia em Nantucket – a ilha em forma de crescente, próxima de Martha’s Vineyard e do Cabo Cod, de onde partira o navio – e acompanha a vida dos oito sobreviventes após a tragédia.
O clímax que faltava
Embora o encontro de Melville com Thomas Nickerson no filme No Coração do Mar seja ficcionado, o escritor inspirou-se de facto na história do Essex para escrever a sua obra-prima Moby Dick. Melville trabalhou ele próprio na caça à baleia durante o ano de 1941, por isso conhecia bem o meio. Mas faltava-lhe um clímax para a sua história e a leitura do relato de Chase (que estava publicado em livro) de como um cachalote enfurecido afundara um navio de 240 toneladas proporcionou-lhe aquilo de que precisava.
Durante o inverno de 1850-1851 Melville dedicou-se a escrever Moby Dick com uma dedicação obstinada, fechado no seu escritório e só aceitando alguma coisa para comer por volta das quatro ou cinco da tarde. “Deem-me uma pena de condor e o Vesúvio para eu usar como tinteiro!” – terá pedido. De facto, não estava a escrever apenas um livro, mas sim um verdadeiro colosso literário.