Será difícil esquecer Marília Pêra. Um rosto esfíngico, forte, capaz de impor a maior das distâncias e quebrar-se como um espelho fragmentado. Além de atriz, foi cantora, bailarina, coreógrafa, produtora, realizadora. Morreu aos 72 anos, no dia 5, vítima de um cancro de pulmão. Morreu em casa, no Rio de Janeiro, junto da família, uma artista que foi tudo na sua própria vida. Disfarçou-se até ao fim, e quis esconder do público a doença, mas os primeiros rumores circularam quando foi obrigada a afastar-se dos ecrãs e dos palcos por um ano depois de lhe ter sido diagnosticado um desgaste ósseo na região lombar.
O espetáculo habituou-se a ela. Foi-lhe entregue ainda sem um mês de vida: delicado adereço que se estreou ao colo de uma amiga da mãe, também atriz, que a deu assim à luz duas vezes. A vida foi mil vidas, mil rostos, uma impressionante multidão, e a morte só podia dar-se entre um ato e outro. Muita gente não a apagará da lembrança: mais de 50 peças de teatro, 30 filmes, 40 telenovelas e ainda minisséries e outros programas na televisão – fez seus alguns dos mais marcantes papéis na arte em que o Brasil é realmente um gigante.
Estava cheia de projetos. Além de um filme ainda em cartaz, Chico – Artista Brasileiro, em que participa lendo em voz off excertos do último romance de Chico Buarque, O Irmão Alemão, estava a encenar um espetáculo teatral sobre Marilyn Monroe, interpretada por Danielle Winits, e tem no ar a série Pé na Cova, de Miguel Falabella. Amigos íntimos, os dois contracenavam na série e Falabella estava a preparar um novo projeto na Globo que teria Marília como protagonista.
Tinha iniciado, também, a gravação de um álbum de canções de amor, com lançamento em 2016.
Nascida no seio de uma família de artistas – a mãe brasileira, Dinorah Marzullo, o pai português, Manuel Pêra, ator e mil outras coisas, e a avó, Antônia Marzullo, também atriz –, Marília guardava da sua infância a ideia do privilégio que foi crescer no reino de brincadeira adulta do teatro. Assim, aprendeu que podia ser tudo. «Minha formação vem do meu pai. Ele tocava piano, violino, era ator, foi carpinteiro, alfaiate de teatro», lembrou a atriz, numa entrevista ao site da Rede Globo. «Adorava música erudita. Por causa dele estudei 11 anos de piano e comecei o meu aprendizado de ballet clássico. Meu pai me trouxe o teatro e a música».
No nosso país ficou conhecida por novelas como Rainha da Sucata (1990), Cobras & Lagartos (2006), Duas Caras (2007) e Ti Ti Ti (2010), todas exibidas na SIC. A primeira vez que pisou um palco pelo seu próprio pé foi aos quatro anos. Era uma das filhas de Medeia na peça de Eurípedes e, noite após noite, era a sua própria mãe quem a matava.
Criou personagens não apenas marcantes mas um rol de fortíssimos perfis de mulher: as pérfidas e as loucas, as perdidas e as frágeis, deusas desfeitas, a inesquecível prostituta Sueli, em Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980), filme de Hector Babenco que alcançou projeção internacional. No cinema, outros momentos altos da sua carreira foram Bar Esperança (1983), de Hugo Carvana, Tieta do Agreste (1995), de Cacá Diegues, e Central do Brasil (1996), de Walter Salles.
O seu talento foi reconhecido também ao encontrar o peso e a medida certa na interpretação de grandes figuras femininas, como a diva Maria Callas, a cantora Dalva de Oliveira, a estilista Coco Chanel e a primeira-dama brasileira Sarah Kubitschek. Mas neste capítulo a sua especialidade foi mesmo Carmen Miranda, figura que encarnou por cinco vezes ao longo dos seu percurso profissional.
Fora dos palcos, Marília Pêra casou pela primeira vez aos 17 anos, e com o primeiro homem que a beijou, o músico Paulo da Graça Mello, que viria a morrer num acidente de carro em 1969. Fruto da relação, Ricardo Graça Mello, também ator, contracenou recentemente com a mãe em Pé na Cova. Mais tarde, foi casada com o ator Paulo Villaça, que conheceu em Fala Baixo Senão Eu Grito, e com Nelson Motta, com quem teve as filhas Esperança e Nina.
Numa entrevista ao jornal O Globo, em Dezembro de 2012, falou sobre a morte, e como a perda de seus amigos a deixava impressionada. «A morte… Uma coisa tem-me abalado muitíssimo no último mês. (…) Essa coisa louca que foi morrer Marcos Paulo e Alcione Araújo. Vou para o cemitério, vejo meus amigos naqueles caixões, depois vou para Pé na Cova, em que eu e Miguel somos donos de uma funerária. Havia cenas com caixões, os figurantes deitados, e a gente ali, com aquele texto iconoclasta falando dos mortos. É uma consciência da presença da morte, muita tristeza por causa dos amigos, mas com muito bom humor por causa do Miguel. Uma loucura. Mas é interessante».