2.Muitos julgarão que a escolha da TVI foi um capricho, uma escolha arbitrária ou uma mera coincidência: poderia ser a TVI, como a RTP ou a SIC. Na verdade, a SIC já teria agendado uma entrevista com José Sócrates, a qual já estaria planeada e devidamente estruturada. Ricardo Costa, Bernardo Ferrão e Rui Oliveira e Costa terão sido as peças-chaves que permitiram a aproximação da estação televisiva de Carnaxide ao “animal feroz”: o plano seria uma entrevista conjunta de Sócrates à SIC e ao semanário do mesmo grupo de comunicação social. José Sócrates –apoiado por João Araújo e os seus companheiros políticos mais próximos, como José Lello, Paulo Campos e o actual Ministro dos Transportes, Pedro Marques – não terão apreciado as perguntas, tidas como incómodas, propostas pelos entrevistadores. Resultado: o processo atrasou-se, as partes não chegaram a um consenso mínimo sobre o conteúdo da entrevista e acabou por morrer a ideia do exclusivo da SIC.
3.Além disso, o timing não era o mais apropriado: com as atenções centradas nas legislativas e, subsequentemente, no processo de formação do Governo, com a controvérsia girando em torno dos acordos à esquerda – José Sócrates perderia visibilidade e a sua entrevista não teria o impacto mediático e político desejado. Mais: revelava-se, para Sócrates, vital saber se António Costa perderia, não conseguiria arranjar uma solução de Governo e sairia da liderança do PS – ou ficaria na liderança do partido e na chefia do Governo. Porque a sua narrativa seria radicalmente diferente, caso António Costa não formasse Governo (por razões que se intuem facilmente). Ficou, pois, a decisão sobre a entrevista adiada para o final do ano.
4.Eis que, neste filme, aparece um outro protagonista: Sérgio Figueiredo, director de informação da TVI e muito amigo de José Sócrates. A entrada em cena deste mudou o “plano de jogo” de José Sócrates: a prioridade passou a ser a entrevista à TVI, relegando a SIC para um plano inferior. O primeiro factor que determinou José Sócrates a escolher a TVI foi a amizade a Sérgio Figueiredo: é um traço da personalidade do “animal feroz” dar prevalência às suas amizades e ser muito amigo do seu amigo. Para José Sócrates, é um critério decisivo nas suas decisões políticas e mediáticas, logo, não poderia dar uma nega a Sérgio Figueiredo. O próprio Sérgio Figueiredo explicou, em artigo no Diário de Notícias: “ estive em sua casa (de José Sócrates), na verdade, na casa emprestada pela sua ex-mulher, para voltar à conversa. Havia um processo semelhante com uma televisão concorrente. (…)Abro um parêntesis para advertir que isto é algo normal, nas entrevistas, digamos sensíveis, aqui ou em qualquer parte do mundo. Isto pode, é deontologicamente aceitável, o que não se pode é dar a conhecer previamente o questionário. Negociar as perguntas. Aceitar restrições que comprometam ou limitam a função essencial do jornalista, que é perguntar. Querer saber o que não se sabe. Pedir que se explique o que não se percebe”.
5.De facto, o conteúdo das perguntas não foi combinado com José Sócrates: todavia, José Sócrates já sabia as temáticas sobre as quais falaria e traçou, segundo consta, linhas vermelhas, ou seja, perguntas que não poderiam ser colocadas e terá feito considerações sobre o tom do jornalista entrevistador. Diz-se, nos bastidores, que a direcção da TVI mostrou uma flexibilidade superior à flexibilidade demonstrada pelos responsáveis da SIC – o que é perfeitamente admissível e está ao abrigo da liberdade editorial deste grupo de media.
6.Por outro lado, José Sócrates escolheu a TVI, por ser a estação de televisão líder de audiências e com maior penetração no público que José Sócrates pretende conquistar para a sua causa. De facto, o modelo escolhido para a entrevista é o mais eficaz e o mais propício para Sócrates brilhar – domina a linguagem televisiva e, para o animal feroz, foi apenas mais uma oportunidade para fazer política. De facto, para José Sócrates, tudo não passa de mais um capítulo da sua vida política – e persiste que o seu modo de vida é um exemplo para todos.
7.O que nós discutimos no modelo escolhido pela TVI são dois aspectos:
i) A divisão da entrevista em duas partes, emitidas em dois dias diferentes. Efeito desta decisão: prolonga o tempo de antena e a exposição mediática de José Sócrates, permitindo a construção, sem contraditório, da sua narrativa. E humanizando Sócrates: tornando o “animal feroz” em figura dócil, ostracizada pelo sistema. Um verdadeiro herói nacional: um “Viriato” que se ergue contra a prepotência do poder judicial. Adicionalmente, como compreender que haja uma parte em que José Sócrates emite a sua opinião sobre o sistema de Justiça; outra parte em que José Sócrates responde a poucas perguntas sobre o processo efectivo; e depois, vamos ter uns largos minutos sobre o José Sócrates comentador. Vamos ter perguntas como “ o que faria no lugar de Costa?” e “ em quem vai votar nas presidenciais?”. O que é que interessa os comentários políticos de José Sócrates? Como é que temos um ex-Primeiro-Ministro indiciado da prática de actos de enorme gravidade – e o interesse dos jornalistas é saber em quem vai votar nas presidenciais! Isto é normal? Isto não é normal. Parece que querem dar alento político a Sócrates, dando de barato que será absolvido, de uma forma ou de outra. Ou, como escreve o director de informação da TVI, “ é um homem acossado, é um suspeito indignado, é um cidadão inconformado, é um político pronto para o combate”. Sim, é verdade, o director da TVI escreve que José Sócrates é um político pronto para o combate – ou seja, o director, que deveria ser independente e imparcial, já está a comprar a narrativa socrática de que é um preso político e, por isso, tem de estar pronto para o combate!
ii) O director de informação da TVI apresenta a entrevista como sendo uma entrevista intimista. Desculpe, uma entrevista intimista? Um ex-Primeiro-Ministro indiciado de crimes gravíssimos, o Primeiro-Ministro que levou Portugal á bancarrota – e a ideia da TVI é fazer uma entrevista intimista? Entrevistar José Sócrates é uma ideia salutar e com interesse público – fazer uma entrevista intimista não lembraria ao diabo! Também vão fazer entrevistas intimistas a Rosário Teixeira? A Joana Marques Vidal? Conclusão: a entrevista intimista tem um efeito objectivo, embora não querido pela TV I– adocicar a imagem de José Sócrates aos olhos da opinião pública. Uma caracterização pertinente é a do próprio Sérgio Figueiredo:, no Diário de Notícias: “ a importância desta entrevista que José Alberto Carvalho conduziu não esteve nas relações bombásticas. Sócrates não fez acusações terríveis nem trouxe novidades espantosas. Foi um relato, por vezes intimista, quase sempre em contra-ataque, de um filme que queira-se ou não, tem sido contado à vontade de cada freguês”.
8. Atentemos, ainda, nas palavras do director de informação da TVI, segundo as quais “ o cidadão inocente não se declara, só se presume. Mas diante do embaraço do Ministério Público, nem é bom presumir o que acontecerá ao nosso sistema judicial caso se confirme o que se teme – que há um juiz, um procurador e um inspector tributário que pisaram a mina e não sabem como tirar dali a pé”. Antes, Sérgio Figueiredo escrevera que “esta primeira parte da entrevista de José Sócrates limitou-se a abrir mais brechas num processo demasiado mau para ser verdadeiro. Um ataque cerrado à Justiça. Viagem ao interior de uma investigação que, manifestamente, está em dificuldade para deduzir uma acusação”. Sim, caro leitor, o director de informação da TVI – estação que realizou e emitiu a entrevista a José Sócrates – qualifica a entrevista e descreve-a nos termos que José Sócrates pretendia que a descrevesse. Sérgio Figueiredo pode ser comentador. Mas não pode esquecer que é titular de um poder, que é o poder mediático. Ora, Figueiredo, ao reforçar a narrativa de Sócrates está a dar, sem qualquer contraditório e sem averiguar os fundamentos da actuação da parte visada – a Justiça portuguesa, a Justiça de todos nós – , razão ao entrevistado. Em algum país do mundo se viu um director de informação da estação que emite uma entrevista – vir dar razão ao entrevistado, no dia seguinte, numa crónica em jornal diário nacional? Porventura é normal: nós é que não conseguimos compreender essa normalidade.
10. Nós admiramos largamente Sérgio Figueiredo, um dos mais notáveis jornalistas da sua geração. É ousado, é moderno, estuda as experiências das televisões internacionais, apreende devidamente as lições – e tem contribuído para a modernização dos media em Portugal. E Sérgio Figueiredo é genuinamente imparcial. Por vezes, porém, como é uma pessoa muito apaixonada, muito dado a impulsos, Sérgio Figueiredo deixa a razão sucumbir à paixão e à amizade. Cada pessoa é com é – os directores de informação também têm os seus feitios. E Sérgio Figueiredo é assim, para além dos seus talentos jornalísticos.
11.Enfim, ao mostrar a entrevista em dois actos, em dois dias seguidos, glorificando José Sócrates e tornando a Justiça Portuguesa a vilã, a maléfica, a “safadinha” – a TVI criou mais uma telenovela para o seu prime-time. Como José Sócrates centrou os seus ataques à Procuradora- Geral da República, Joana Marques Vidal, podemos intitular este novo produto de ficção nacional como a nova temporada da “ Única Mulher”. Para José Sócrates, Joana Marques Vidal é a única mulher que o continua a chatear e a estragar os seus maravilhosos e grandiosos planos de vida! Só falta mesmo Sérgio Figueiredo levar o Anselmo Ralph (para criar a banda sonora) e a Rita Pereira (como a princesa que acompanha o herói Sócrates, na sua luta heróica contra a Justiça Portuguesa) para o estúdio. Temos sucesso à vista? Já imaginamos Sócrates a cantar: “tu és a única mulher”, dedicada à Senhora Procuradora-Geral da República.
12. Em próximo texto, iremos descodificar a estratégia de José Sócrates, iniciada com a entrevista à TVI.