Juízes mostram segredos da Justiça

José Lopes Barata tem uma visão muito própria do ideal de Justiça. Por exemplo: e se, em qualquer dia do ano, em qualquer tribunal do país, um qualquer cidadão pudesse acompanhar in loco o trabalho dos juízes? No mundo do juiz da Instância Central Criminal de Lisboa, no Campus de Justiça, isso seria o quotidiano…

Ainda estamos muito longe desse dia – e o juiz reconhece-o. “Mas há 20 anos não era sequer possível imaginar um dia de Tribunal de Porta Aberta”. O copo está meio cheio.

Este ano, Lopes Barata recebeu um finalista de Direito da Universidade de Coimbra. Só que José Pinto Gonçalves é um aluno atípico. Este ‘juiz por um dia’ tem 50 anos, sente uma “paixão pelas leis” que não lhe cabe nas palavras e é inspetor-estagiário da Autoridade Tributária. Está fácil de ver: o equilíbrio da balança joga-se entre os números e as letras.

Sentado ao lado de Lopes Barata, ao centro da sala do tribunal, os advogados nas laterais, a procuradora da República em frente, o pupilo passa os olhos pela sentença que tem à sua frente e prepara-se para assistir, de um palco a que poucos têm acesso, à condenação de um arguido: um ano e três meses de prisão por um telemóvel roubado no Bairro Alto que, inopinadamente, lhe veio parar às mãos. A pena é suspensa, o homem sai pelo próprio pé. O pupilo já pode contar como é estar ao lado de um juiz enquanto o destino imediato de um homem lhe é anunciado.

O finalista de Direito reconhece o “poder” que os juízes têm nas mãos, mas Lopes Barata sublinha que não se está perante seres do outro mundo. “Um juiz não tem superpoderes, é um homem normal”, entende o magistrado.

José Pinto Gonçalves soube da iniciativa da Associação Sindical de Juízes Portugueses pelo email. Candidatou-se e foi escolhido. Esse processo foi simples. Aquele a que assiste no tribunal, nem tanto. Ainda há-de ouvir especialistas falar sobre aves raras do Brasil e inspetores da Judiciária recordar uma investigação ao contrabando de animais que podem chegar quase aos 100 mil euros por exemplar. “Um bom juiz deve ter uma postura dinâmica, mas ao mesmo tempo ser um elemento equilibrador das forças do tribunal que são contrárias”.

Lopes Barata acena, em aprovação. Está orgulho da aprendizagem que reconhece no finalista de Direito. Quem sabe, um dia, hão-de partilhar uma sala de audiências. Para já, José Pinto Gonçalves está satisfeito com  as funções que desempenha: 1-0, ganham os números.

O estado defensor

No Campus de Lisboa, a Justiça funciona. É certo que há problemas – Lopes Barata acompanha a opinião da maioria dos magistrados dali, que preferiam não ter de partilhar espaços reservados do edifício com arguidos que estão a julgar ou acabaram de condenar. Mas esse é um problema que deixa a milhas de distância a realidade de outras instâncias. Algumas em que os julgamentos decorrem em prefabricados, por exemplo.

Para Lopes Barata, os problemas da Justiça são outros e mais latos. Desde logo, aquilo que considera ser uma falha do sistema. “O Estado preocupou-se em arquitetar a figura do acusador público, o MP, e, pela mesma ordem, devia preocupar-se em criar com a mesma força a figura do defensor público”. Um grupo de advogados, especialistas nas várias áreas do Direito, a funcionar na dependência da respetiva Ordem e com uma carreira e salário iguais ao dos procuradores. A institucionalização da função de defensores públicos, é  essa a proposta. A ideia está longe de ser consensual – tem alguns anticorpos – mas é a proposta de Lopes Barata para uma Justiça mais justa. “Eu, como juiz, por vezes sinto que as pessoas são mal defendidas com este sistema”.

Para a nova ministra, não há conselhos (“a dra. Francisca Van Dunem tem mais experiência do que que eu, também deve ter mais ideias”).

No caderno de encargos, a ministra da Justiça tem uma tarefa imediata em mãos: olhar para o mapa do país, confrontá-lo com o mapa judiciário e perceber onde vai o governo reabrir as portas dos tribunais encerrados na última legislatura. É natural, diz Lopes Barata. “Qualquer pessoa de bom senso vê que a alteração do mapa judiciário alterou algo que vinha de meados do século XIX”. A reforma era, aos olhos do juiz, necessária. Reverter tudo não fará sentido. “Penso que nenhum governo voltará ao século XIX”.

Em tempos de (i)mediatismo, a  Justiça continua a viver de símbolos. E, regra geral, a figura do juiz surge associada a uma imagem de entidade superior – mas Lopes Barata não alinha por esse diapasão.

Condena, é certo, a nova lei do sistema judicial. “A reforma teve uma intenção de desvalorizar o papel do juiz no sistema de Justiça”. Lopes Barata não está certo de que esse “erro” tenha sido casual. Os tribunais, por exemplo, deixaram de ser tribunais e passaram a secções. “A pessoa sabia onde devia dirigir-se, mas agora não, é atirada para dentro de uma amálgama”, diz.