Candidatos de primeira e de segunda?

A hipocrisia, despudorada filha da cobardia e do chico-espertismo, tem efeitos mais devastadores do que o buraco do ozono. É uma terrorista disfarçada de virgem vestal.

A lei que permite que os candidatos à Presidência da República sejam tratados pelos meios de comunicação de forma discriminatória e arbitrária até ao estritíssimo período dos 15 dias anteriores às eleições é uma destas falsas virgens.

Foi assim possível que, na semana passada, tivéssemos assistido a uma sequência de entrevistas televisivas a candidatos à Presidência da República feitas em condições muito distintas: para o primeiro, escolheu-se a instituição pública a que ele está ligado, tendo por cenário uma solene tela com retratos de lentes académicos; para os outros, o estúdio de televisão.

A coisa é particularmente estranha porque esse primeiro candidato, ao contrário dos outros, teve poiso semanal num estúdio de televisão durante anos. Que mensagem subliminar se pretende passar?

Obviamente, que só aquele candidato tem estofo presidencial. Mas esse truque, evidente para todos os que estão familiarizados com este tipo de propaganda, não será detetável como tal pelos incautos, a imensa maioria da população que bebe a televisão como uma missa – e não terá sido também por acaso que esse mesmo canal filmou há tempos o mesmíssimo candidato a rezar numa igreja, espaço que reputo íntimo e inviolável.

Quando o terceiro candidato a ser entrevistado – por sinal, uma candidata – exprimiu frontalmente a sua crítica a estas modalidades distintas, o jornalista explicou-lhe que a diferença de cenário não fora intencional.

Esta desresponsabilização parece-me grave: significa que há candidatos que impõem as suas encenações e que há jornalistas que aceitam essas imposições.

Acresce que a entrevista ao primeiro candidato teve 40 minutos, e as entrevistas aos outros, metade desse tempo.

Quando me formei em Ciências da Comunicação, nos idos de 80 do século passado, isenção e equidistância eram os instrumentos éticos básicos da actividade jornalística.

Creio que ainda assim é, pelo menos na Universidade Nova de Lisboa, uma tão nobre instituição académica como aquela em que se filmou a entrevista a um dos candidatos.

Não declino nomes, porque estou bem ciente de que toda a propaganda serve os seus propósitos, e não quero colaborar nela, nem cairei na tão frequente esparrela de transformar vítimas em verdugos, ou vice-versa. Quero apenas lembrar que o fundamento da democracia é a igual consideração de todas as pessoas, e que uma eleição só pode considerar-se democrática quando todos os que a elas concorrem têm igual acesso aos meios de comunicação social. Não é isso que tem acontecido.

Encontrei também num jornal uma reportagem comovida sobre a escassez de meios desta campanha presidencial, apresentada como novidade redentora – e, de novo, sublinhando a especial frugalidade do tal candidato.

Ora eu empenhei-me de corpo e alma numa campanha presidencial, em 2005-06, para a qual trabalhei noite e dia durante muitos meses a título absolutamente gratuito – e, como eu, muito boa gente.

Era uma candidatura sem apoio partidário – a de Manuel Alegre – e sem dinheiro, que acabou aliás por ter a alegria e a honra de entregar a uma instituição de solidariedade social a sua verba remanescente: tendo sido feita da generosidade de muitos e com um controlo financeiro férreo, conseguiu não só pagar-se na íntegra como ainda contribuir para o Estado Social.

Tenho tanto orgulho em ter participado nessa campanha como tristeza em ver alcandorar a novidade o que não é novo. Não há política nem jornalismo sem memória.

inespedrosa.sol@gmail.com

Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 18/12/2015