Eu já não via há muito tempo a Vanessa e, confesso, começava a sentir a falta. Ela tinha-me deixado de falar porque critiquei de uma forma excessivamente dura a mais recente criatura com quem ela andava a sair. E ainda por cima chamei-lhe estúpida. Eu sei que foi a receita para o desastre.
– Fogo, Vanessa, só te metes com malucos!!! Quando é que vais parar com isso?
– Na realidade, não sei parar. É o processo dos alcoólicos. Começam a beber e vão por aí fora.
– Isso é uma comparação estúpida, disse-lhe eu, que estava num dia de pouca sensibilidade para com as emoções alheias.
– Não é estúpida. Eu sou um bocadinho viciada em malucos. Se tu fumas e não consegues parar, como é possível que não entendas que eu continue a sair com malucos? É assim tão estranho? Não consigo parar, pronto!! Acho uma coisa relativamente normal.
Desta vez o maluco era mais maluco do que o costume e, sinceramente, eu não achei bem. Em nome de vários princípios, o primeiro dos quais a sanidade mental, acho que uma pessoa deve fazer tudo para evitar a companhia de malucos da mesma maneira que deve ser moderada no consumo do álcool. Do tabaco não posso falar com autoridade, mas evito os fritos. Fritos, bebidas brancas e malucos. Por que raio a Vanessa não consegue evitar sair com malucos?
– Pá, uma pessoa que não se protege dos malucos é muito estúpida.
Era a segunda vez que eu usava a palavra “estúpida”, mas desta vez ela ofendeu-se de morte. Que eu era amiga dela e lhe tinha chamado estúpida. Que não podia ser. Que isto já tinha acontecido uma vez há 20 anos e ela tinha desculpado mas agora não.
– Estúpida és tu!
E foi depois disto que a Vanessa deixou de me atender o telefone. Num primeiro momento, senti a coisa como uma espécie de alívio. Depois tive sentimentos de culpa por estar a sentir uma espécie de alívio. Mas eu não tenho nenhuma razão para ter sentimentos de culpa: a Vanessa cansa-me, é um fardo que eu carrego comigo pela vida desde o princípio da idade adulta. Um corte de relações, ainda por cima decidido por ela, vinha mesmo a calhar. Mas depois tive outra vez sentimentos de culpa. No fundo, ela é minha amiga. Esteve comigo em péssimos momentos, naqueles em que só aparecem os “happy few” ou mais apropriadamente os “sad few”. Esteve lá sempre.
Ontem, um mês depois do amuo, decidi telefonar-lhe outra vez. Desta vez, atendeu.
– Então, novidades?
– Mandei passear o maluco!
– Que grande notícia, Vanessa!
– Talvez tivesses alguma razão, lá no fundo.
– E agora?
– Decidi apostar mais nas relações platónicas altamente tórridas. Lembras-te do Zé Manel? Ultimamente tenho ido almoçar mais vezes com ele.
– E que tal?
– Não há sexo, mas é muito bom. Eu e o Zé Manel temos uma relação fabulosa há muitos anos. Uma coisa assim não consumada. Descobri agora que existem relações platónicas altamente tórridas.
– Nunca tinha ouvido falar disso (é mentira, tinha ouvido mas dava-lhe outro nome).
– A sério? Não sabes o que perdes. As relações platónicas altamente tórridas são um mundo quase perfeito. Há sedução e não há chatices. Evita-se o mau sexo.
– Mas não se faz sexo.
– Pior que não haver sexo é o mau sexo. As relações platónicas altamente tórridas criam toda uma atmosfera e impedem o pior. São relações excitantes, mas seguras. E sabes uma coisa? Há muito tempo que não me sentia tão feliz.