Tac tac tac tac tac. Pé no pedal, mão na roda. A linha vai atravessando o tecido e os panos ganham formas e vida. Na avenida Filipe Samuel Magaia, e noutras que circundam o Mercado Central de Maputo, as máquinas de costura sucedem-se. Daquelas antigas, que as nossas avós tiveram. Estas estão mais mal tratadas. Pelo sol, pela chuva, pela vida. Sentados às máquinas há homens e mulheres, alfaiates e costureiras, daqueles de uma vida. Dividem a rua com sapatos usados e de pilhas de roupas velhas que há muito perderam o dono mas que ali aguardam por alguém que lhes volte a dar vida. Chamam-lhes as xicalamidades, resultado dos contentores de vestuário que chegam através da ajuda humanitária – e por isso isentos de taxas alfandegárias – mas que acabam por criar um mercado paralelo. As peças que chegam são colocadas em sacos e os sacos são vendidos assim mesmo, fechados, quem compra não sabe o que lá está. O conteúdo desses sacos acaba depois à venda pelas ruas de Maputo. Há de tudo. “E dona, é tudo ao preço da banana!”.
Entre homens e mulheres mais velhos, há jovens que compram às escuras calamidades em busca de uma preciosidade perdida. Depois é TAC tac tac tac tac. E do velho se faz novo. Uma capulana aqui, uma renda acolá e o lixo do ocidente vira moda africana. Há coisas que não se ensinam. Ninguém ensinou os moçambicanos a combinarem cores, padrões, texturas. Mas eles sabem fazê-lo. Como poucos. Fazem-no desde muito novos, primeiro com estas calamidades ou outros desperdícios que vão encontrando, depois com os tecidos que conseguem comprar.
Em Maputo todos são, ou conhecem, alfaiates e costureiras. Os pais ensinaram os filhos, os avós ensinaram os netos. Em país onde o dinheiro não abunda, não se compra roupa, faz-se. Ainda mais se esse país é um dos grandes produtores têxteis do continente africano. Ou era.
Eram tempos faustosos para a então Lourenço Marques. Anos em que o luxo ocidental tomou de assalto a capital do país. Em 1975, porém, com a descolonização, Moçambique assumiu-se na sua africanidade, e com isto, o mercado das capulanas prosperava. Mas em 1977 a guerra civil tomou conta do país. E a guerra leva tudo, como as águas quando o céu se zangou e levou tudo nas cheias de 2000, as piores que o país já enfrentou.
O racionamento imposto pelo Governo acabou por também se refletir na forma de vestir dos moçambicanos. Com a industria têxtil moribunda, a roupa que chegava ao país era proveniente da RDA. “Recebíamos tecidos impróprios para o nosso clima e, mesmo para consegui-los, tínhamos de estar ligados à cooperativa de consumo. Havia cartões, registos – só tínhamos direito a certa quantidade por mês – e grandes bichas para consegui-los. Então, nessa altura, a moda morreu mesmo – não havia possibilidade de costurar, tínhamos de vestir o que houvesse”, recorda Adélia Tique, pioneira da moda moçambicana. E o que havia eram vestidos da RDA, “todos iguais”. “Uma vez até houve confusão no prédio onde vivíamos porque o vestido da minha mãe caiu na varanda da vizinha que, ao sair à rua, foi interpelada pela mamã. Julgava que ela trazia o vestido desaparecido. Mas não, os vestidos eram todos iguais. Foi uma fase muito triste”.
Em 1987, aquando da morte de Samora Machel, Moçambique enfrentava um duro Programa de Reabilitação Económica, imposto pelo FMI, que, entre outros aspetos, implicava que o país adotasse uma economia de mercado. Resultado? Em 1990, havia 472 fábricas que empregavam 472 mil pessoas. Um ano depois, eram 369 as fábricas e apenas 70 mil os trabalhadores. Neste ano de 1991, a indústria têxtil movimentava 71 milhões de dólares, um valor que cai para cerca de 11 milhões em 1995. Em 2000 restavam apenas 19 empresas têxteis no país e 26 confeções. Uma a uma, foram todas fechando portas: a Textáfrica e a Textmoque em 1994. EM 1998 a maior de todas – a Texlom – paralisava indefinidamente. Sedeada na Matola, mesmo na cintura de Maputo, chegou a empregar 1200 pessoas.
Em 2009, a Rede de Desenvolvimento Agha Khan investiu cerca de 2,5 milhões de dólares para abrir a Moztex, antiga Texlom. “Atualmente temos cerca de 300 máquinas e em breve vamos ter 1000 máquinas e, nessa altura, estaremos em condições de empregar entre 1800 e 2000 pessoas, com o investimento a atingir 7,5 milhões de dólares”, disse à data Nazim Ahmad, representante para Portugal e Moçambique da Rede de Desenvolvimento Agha Khan. Mas esta unidade não fabrica capulanas, mas antes recebe a matéria-prima de fora de Moçambique para a transformar em t-shirts, calças, camisas, que posteriormente exporta para a África do Sul.
Já em Agosto de 2014, reabriu um outro gigante do têxtil moçambicano, a fiação Riopele, agora sob o nome Mozambique Cotton Manufacturers. Este investimento privado que reúne capital português e moçambicano, num total de 30 milhões de euros, criará 750 empregos até 2016, em Marracuene, nos arredores de Maputo e, de acordo com o então presidente Armando Guebuza, significou “o renascer de uma indústria”. Até porque, ainda que nesta fase inicial, este projeto se dedique à produção e processamento de algodão, numa fase posterior a Mozambique Cotton Manufacturers dedicar-se-á à tecelagem.
CAPULANA DA CHINA
“Tecido há, não é é nosso”, diz Isabel, ou Isa, como prefere. Não larga a sua máquina de costura, nem para conversar. Mas quando perguntamos como é para arranjar tecidos, tem a resposta na ponta da língua. Sabe que os tecidos com que trabalha, e cujo resultado vende diariamente na FEIMA, feira dedicada ao artesanato, em Maputo, não são produzidos no seu país. Ainda assim, as capulanas continuam a ser um dos grandes cartões-de-visita de Moçambique, não apenas para os que lá vivem e as usam, mas também para os turistas. Um retorno financeiro que apenas residualmente fica no país.
Num intervalo de pouco mais de uma década, Moçambique passou de uma referência na produção têxtil para um país que, apesar de ser um dos grandes produtores de algodão do mundo não tem o que lhe fazer senão exportar para outros países que, por sua vez, não apenas transformam o algodão em fio, como o fio em tecido e o tecido em roupa. Para quê? Para depois enviar esse material de volta para Moçambique e sendo assim mais um dos fatores que contribuem para a dependência do país de terceiros. Os relatórios do Instituto do Algodão de Moçambique indicam que, das cerca de 30 mil toneladas de fibra produzidas anualmente, 100% é exportada e o país importa produtos manufaturados do algodão como os têxteis e o algodão hospitalar. Ou seja, Moçambique pode até ser mundialmente reconhecido pelas suas capulanas, mas não as produz.
A Casa Elefante é uma espécie de templo da capulana, existente há mais de um século. Lá dentro não vemos sequer as paredes, apenas tiras e tiras de tecidos. Em xadrez, flores, animais, desenhos mais gráficos e outros mais realistas. É certo que se pode comprar capulanas em quase todas as esquinas de Maputo, mas em nenhum lado como aqui.
Meera Radia é a mais jovem da família Radia, que há quase 35 anos assumiu os destinos desta casa. Toda a família ali trabalha. Também ela não esconde a realidade – a quem a quiser saber, claro: não há capulanas feitas em Moçambique. Já não há. A grande produtora de capulanas é uma empresa holandesa, mas a produção propriamente dita acontece na China e na Índia. “Agora já nem há quem desenhe, quem desenha são pessoas que estão noutros países e que vieram cá aprender e investigar os desenhos. Antes, quem desenhava as capulanas eram as mamanas, mas com a guerra venderam os seus desenhos ou trocaram-nos por bens essenciais”, explica Meera. Ainda assim, há regras: originalmente as capulanas moçambicanas eram “capulanas de riscas”, ou seja, de xadrez. Depois surgiram outros desenhos, “sobretudo temas tradicionais da representação da mulher, da vida rural, instrumentos musicais, âncoras, e sempre em tons mais escuros do que noutros países africanos”.
BLACK IS BEAUTIFUL
A primeira década dos anos dois mil foi claramente a década da afirmação do Black is Beautiful. Criadores como Jean Paul Gaultier e as casas Louis Vuitton e Prada, levaram para as grandes passerelles internacionais a imagética, as cores e os padrões de África. Em 2008 e 2009, o Metropolitan Museum of Art apresentou a exposição “The Essential Art of African Textile”.
De repente, o mundo começou a despertar para a habilidade única que os africanos têm de conjugar cores, padrões e texturas, muito fruto também da miscelânea de heranças que os países vivem de forma cada vez mais ativa. E procurou adaptá-la a uma linguagem mais ocidentalizada.
Depois, o fenómeno é conhecido: se em Paris e Milão usam as nossas capulanas, nós também as queremos voltar a usar. E, lá está, a juventude africana, e a moçambicana em particular, neste caso, redescobriu as suas tradições têxteis.
Para isso foi fundamental o trabalho de estilistas como Nivaldo Thierry, que usou a capulana Impala, considerada uma das mais clássicas estampas, numa coleção que ajudou os jovens moçambicanos a reconciliarem-se com as suas tradições. Ou Taibo Bacar, o primeiro estilista moçambicano a atingir o reconhecimento internacional.
Natural de Maputo, este filho de costureira cresceu rodeado de tecidos e máquinas de costura. Ainda assim, passou pelos cursos de Tecnologias da Informação e Gestão de Empresas, até decidir apostar na moda. Estudou em Espanha, no Instituto Marangoni, mas regressou a Moçambique para continuar a desenvolver o seu trabalho. O uso das capulanas de formas contemporâneas e a sua participação, em 2011, na Milan Fashion Week – Moda Donna, abriu os olhos do mundo para o facto de haver moda em Moçambique.
O caminho, no entanto, havia começado a ser trilhado muitos anos antes, quando Vasco Rocha, um portuense de 51 anos, a viver em Maputo há já quase 20 anos, se aventurou na criação da Mozambique Fashion Week (MFW), atualmente considerado como o grande motor da moda moçambicana.
GENTE EM CIMA DOS TELHADOS
Corria dezembro de 2005 e o fundador da DDB, uma das maiores agencias de comunicação do país, estava a organizar uma ação de Verão para a Vodacom , em Inhambane. “Era uma iniciativa chamada 100% Sama Time e surgiu a ideia de incluirmos, além dos concertos, dos jogos de futebol de praia e dos insufláveis para crianças, alguns desfiles de moda, uma coisa pequena, com três lojas e sete costureiras e oito modelos femininos e três masculinos. Na altura já aconteciam, ainda que muito esporadicamente, desfiles de moda em Moçambique, mas nunca tinham muito destaque. Entretanto, durante esta ação, aquilo que acabou por ter mais sucesso foram justamente os desfiles, que levaram a Inhambane muita gente com glamour e cosmopolita. Foi uma brutalidade de gente, que, como já não havia alojamento na região, houve pessoas que montaram tendas em cima dos telhados. Foi de tal forma que optámos por não fazer o ultimo desfile, que seria a 31 de dezembro, por questões de segurança”.
Vasco e a sua equipa regressaram a Maputo com a sensação de que algo tinha acontecido em Inhambane e que não deviam ignorar esses sinais. Mãos à obra, com uma equipa de parceiros sul-africanos, país onde estas lides da moda já levavam grande avanço, e em 2006 nasce oficialmente a MFW, como “evento de moda, mas também de música, artes plásticas, cultura e uma plataforma de ensino”, em vez da tradicional semana de moda apenas concentrada em desfiles. “Tínhamos de fazer da MFW uma festa para conseguirmos conquistar os moçambicanos”.
Logo nesta edição o nome de Adélia Tique sobressaiu dos restantes. Havia sobrevivido aos vestidos da RDA e trabalhava há 30 anos como estilista. Tinha finalmente um palco para mostrar o seu trabalho. O seu desfile foi amplamente aplaudido, até pelos convidados estrangeiros. O que nenhum deles sabia era que, dias antes do desfile, na sessão de provas, Adélia viu as criações dos designers africanos convidados. Diz que sentiu “vergonha” ao perceber que o seu trabalho estava a anos-luz. Pegou na roupa e voltou para casa. Em dois dias refez toda a coleção. “É por isto que há convidados, para se aprender com o seu trabalho”, diz Vasco Rocha, a propósito de um percurso que celebrou, na semana passada, 11 edições. “Nos primeiros anos estivemos a limpar o matagal do terreno, agora acho que estamos no momento de viragem. Os primeiros dez anos serviram para mudar as mentalidades e mostrar o potencial da indústria têxtil. Agora é preciso apostar na formação e na qualidade para irmos mais longe. Basta olharmos para o país vizinho para percebermos onde poderíamos chegar: só a responsável pela Semana de Moda da África do Sul, que também é designer, a Lucilla Booyzen, tem 400 pontos de venda”.
OS NOVOS TALENTOS
Ser estilista é hoje um estatuto em Moçambique. E a MFW um acontecimento. Há cartazes por toda a cidade e não há quem não saiba do que se trata. Mais de 60% da população moçambicana tem menos de 34 anos e essa é a mesma geração que passou os últimos 11 anos a ouvir falar da MFW. “É por isto que cada vez temos mais jovens a quererem trabalhar na indústria da moda, não apenas como estilistas, mas como maquilhadores, cabeleireiros…”, explica Vasco Rocha.
É por isto que o primeiro patamar da MFW é o MFW School. Esta plataforma lança o desafio a estudantes para que enviem o croqui de um coordenado. No final são selecionados vinte para produzirem esse coordenado e o apresentarem na MFW.
Foi aqui que começou Omar Adelino, hoje com 22 anos. Na verdade não pensava ainda em ser estilista, mas tinha muita curiosidade em assistir à MFW e a participação neste concurso dava-lhe acesso a um passe para todos os desfiles. Participou e “os convites nunca mais pararam de chegar”. Nos últimos três anos tem-se afirmado na moda moçambicana, sobretudo nesta edição da MFW em que foi escolhido como Young Designer do ano. “A maior dificuldade é a falta de matéria-prima. Não há e o que há é muito caro. Somos um dos maiores produtores de algodão, não se justifica estas dificuldades. E depois ainda estamos a tentar conquistar o povo, mas está melhor, estão a começar a consumir o que nós fazemos. E depois, claro, falta-nos a formação. Fazemos o que imaginamos, mas não temos o lado técnico”.
Para suprir estas lacunas, Omar tem contado com a colaboração da CNA Federmoda, que é parceira da MFW e tem levado regularmente criadores moçambicanos a breves formações e desfiles em Itália.
Outros, ainda que sejam casos raros, têm conseguido estudar fora de Moçambique. Como Shaazia Adam, que estudou, tal como Taibo Bacar, no Instituto Marangoni, tendo depois estagiado no ateliê Alexander McQueen, em Londres.
Desde os 12 anos que sabia que queria ser designer de moda. Aos 16 apresentou a sua primeira coleção, no Clube Militar de Maputo, o que faz com que, aos 25 anos, já seja considerada uma veterana. Apesar das experiências no estrangeiro nunca teve dúvidas de que queria “voltar para Moçambique” e ser um dos motores que encabeça este movimento da construção da indústria de moda moçambicana.
Na semana passada, em plena semana da moda, inaugurou a sua primeira loja, tornando-se assim numa das três criadoras de moda com loja própria em Maputo – as outras são a portuguesa Carla Pinto com a marca Ideias a Metro, e Taússy Daniel. O espaço fica numa das principais artérias de Maputo, a avenida 24 de Julho e foi pensado à imagem das lojas de criadores ocidentais. Na coleção que tem em exposição na loja, bem como na que apresentou nesta edição da MFW, Shaazia Adam quase não usou capulanas. “Acho que temos de encontrar um equilíbrio entre a tradição e a modernidade. Não devemos voltar as costas à História, mas também não podemos ficar reféns da capulana”, remata.
AQUILO QUE NÃO SE ENSINA
“Desde 2005 há uma grande evolução visual dos moçambicanos, há um maior investimento e uma maior autoestima. O país lambe as feridas da guerra e, como sobrevivente, tem orgulho nisso. E quer mostrar esse orgulho”, conclui Vasco Rocha.
Um orgulho que se vê nas ruas, nos homens e mulheres que, mesmo com pouco, querem estar no seu melhor. “Oh dona, está bonito, não está?”, perguntam-nos sucessivamente.
Apesar dos desequilíbrios ainda excessivamente evidentes, Moçambique já não é o mesmo país que pôs crianças nas frentes de batalha, como escreveu o “New York Times”, em 1980. É, antes, o país onde as modelos começam a ter a mesma altura que as internacionais, pela simples razão que já não estão subnutridas. E onde as mulheres gastam 8 mil meticais (152 euros) em mechas de cabelo e 700 meticais (13 euros) para manicure. No mesmo país, 7 mil meticais (133 euros) é o que custa um semestre de universidade privada, e o salário mínimo na função pública é de 2270 meticais (43 euros). Contas que nos podem fazer pensar se a moda e a indústria têxtil serão assim tão importantes. Uma dúvida que o crítico de moda sul-africano e um dos grandes responsáveis pela entrada de designers deste país na Semana de Moda de Londres, Adam Levin, partilhava quando foi convidado para assistir à edição de 2006 da MFW:
“Pode a moda constituir uma ferramenta de desenvolvimento num país cujo rendimento médio é de três dólares por mês?”. A resposta, quase dez anos depois, parece simples. Pode. Por exemplo, no final deste mês de outubro, a balança comercial da indústria têxtil e de vestuário portuguesa registava um saldo positivo de 910 milhões de euros.
Mas para que a moda constitua a tal ferramenta de desenvolvimento, tem de vir de braço dado com a reconstrução de uma indústria moribunda, com a recuperação de um património visual, com a formação. O bom é que tudo isto se constrói e ensina. O que não se ensina, é aquilo que os moçambicanos parecem ter de forma natural: uma maneira de conjugar cores, tecidos e texturas, uma criatividade natural de quem sobreviveu à guerra e tem orgulho de si. Gente que não tem escolas de moda, nem acesso às grandes bíblias internacionais, como a “Vogue”, a “Elle”, a “Harper’s Bazaar”. Mas tem o que não se ensina, o tal dom – chamemos-lhe assim – de simplesmente saber fazer. E querer fazer.