“As imagens que vão para o inferno”, disse um dia Ellsworth Kelly, numa frase que ficará consigo para sempre. O pintor e escultor norte-americano que marcou o século XX com o seu abstracionismo geométrico morreu este domingo aos 92 anos na sua casa, em Spencertown, onde vivia com o fotógrafo Jack Shear, seu companheiro. Influenciado por Picasso e Matisse (dizia o próprio, e já vamos à história do seu primeiro e único encontro com o pintor espanhol), Kelly fez a ponte entre o modernismo europeu e o americano, como disse o galerista nova-iorquino Mathew Marks, que ontem anunciou a sua morte “Ele era um original americano.”
Tido como um dos maiores artistas abstratos norte-americanos do século XX, deixou, com o seu abstracionismo geométrico, uma importante marca na pintura americana do pós-II Guerra, escrevia ontem o “New York Times”, com as suas pinturas que “combinam formas sólidas com as cores brilhantes do abstracionismo europeu com as formas destiladas do quotidiano”. Formas tão diversas como “as sombras das árvores ou os espaços entre elementos arquiteturais”, diz a sua biografia no site do Guggenheim de Nova Iorque, que em 1996 fez uma retrospetiva da obra do artista
Mas o seu trabalho não foi sempre assim. Basta ver, por exemplo, o auto-retrato que pintou em 1947, quando era ainda um estudante de Pintura, em que o vemos de corneta na mão e pés descalços. Confrontado com essa pintura, explicou que a corneta foi infuência do expressionista alemão Max Beckmann. “O nosso professor era alemão e convidou Beckmann para falar connosco. Mais tarde, em Paris, mostrei esta imagem a [Fernand] Léger, que me disse: ‘Este jovem devia regressar à América e tocar a sua corneta.’ Não foi simpático. Mas estava certo. Eu tinha que fazer o meu próprio caminho. Tinha as formas;. as curvas e os triângulos. O que eu precisava de fazer era tirar a imagem”, contou numa entrevista que deu ao “Observer” no mês passado por ocasião do seu 92.º aniversário.
“Eu dei o que recebi”, disse sobre a sua obra ainda nessa conversa em que falou da vontade que tinha de viver por mais 15 anos, mas também das angústias que a velhice trouxe. “[Agora] é mais difícil. Já não consigo trabalhar em quadros muito grandes, por isso as ideias estão um bocado bloqueadas”, admitiu o artista que ficou conhecido pelo seu trabalho em grandes escalas. “Sinto que o mundo está mesmo aqui e que continua a vir ao meu encontro e eu quero fazê-lo, responder a isso.”
Kelly nasceu em Newburgh (Nova Iorque) em 1923 e, depois de ter estudado Pintura na escola do museu de Belas Ates de Boston e combatido na II Guerra, mudou-se, em 1948 para Paris, onde três anos mais tarde expôs pela primeira vez individualmente, na galeria Arnaud Lefebvre. Só vários anos mais tarde regressaria aos Estados Unidos. “Paris era cinzenta depois da Guerra. Eu gostava de estar sozinho. Gostava de ser um desconhecido”, disse numa entrevista ao “New York Times” em 1996 em que recordou esses anos passados na capital francesa.
“Não falava francês muito bem, e gostava desse silêncio”. Esta frase explica muita coisa, incluindo o que aconteceu naquele dia em que se cruzou com Picasso. “Gostei dele desde o início. Só o vi uma vez.” E contou, sublinhando que só o viu mesmo uma vez na vida: “Estava num carro, parado no trânsito, e olhei pela janela e lá estavam os seus olhos negros. E o Picasso disse, ‘Conheço-o?’ O chauffeur convidou-me para me sentar. Eu pensei: ‘O meu francês é tão mau que se eu entrar ele vai expulsar-me em três minutos.’ E o carro arrancou.” Foi só isto, Mas Picasso viria a influenciar toda a sua obra. Como disse numa das suas entrevistas ao “Guarsdian”: foi Picasso quem “mostrou aos jovens artistas como se faz um quadro”.