Sim, aquele em que o miúdo envergonhado fica com a miúda popular, o pai com a Claudia Schiffer, o Hugh Grant é primeiro-ministro e a Lúcia Moniz enrola-se com o Colin Firth. Já se lembra? Claro que sim. Nem que seja pelas filmagens na baixa lisboeta, onde fomos caracterizados da forma mais brejeira possível de que há memória. É giro, mas vá, não somos mesmo assim. Está a ver aquela parte no final, antes dos créditos, com uma música sentimental onde um quadro humano se abraça em aeroportos por todo o mundo para comemorar o regresso de um familiar, amigo, colega, amante, que já não vê há tempo suficiente para sentir saudade? É duplamente estranha essa sensação e a teoria que o filme lança. Primeiro porque é profundamente cliché – toda a gente sabe que essa coisa da troca de afetos entre humanos não corre assim de forma tão perfeita como pintam, nem é acompanhada de música. Só mesmo dentro das nossas cabeças. Segundo, porque nos sentimos estranhos com a semelhança que aqueles abraços e beijos nos trazem. E foi mesmo esta teoria que nos levou ao Aeroporto da Portela- como uma amostra um pouco mais pequena, claro-, no dia 23 de Dezembro. Não acreditamos que o “amor aconteça” daquela forma tão hollywoodesca. É quase impossível, não? Para encontrar a resposta vai ter de fazer pausa, pegar nos óculos e ler. Vamos ver se concorda ou não. Logo nos dirá.
Pela manhã, já o nevoeiro dava os bons dias, e as “Chegadas” enchiam-se com cartazes repletos de nomes, coloridos de todos os feitios e maneiras, segurados por famílias ansiosas. Junto às cadeiras de metal, uma cara nervosa, com um lenço na cabeça roxo, está a falar em inglês para um amigo. Não se percebe bem à primeira porque as palavras saem a medo, tremidas. Mais próximo, lá se entende: “A minha linguagem corporal é demasiado expressiva, estou tipo ‘vá lá!’ ”.
Ioana, romena de 26 anos, está à espera do namorado há 12 horas, Gideon, ganês de 36 anos, que teve de parar no Porto porque o avião que veio de Acra, capital do Gana, não conseguiu aterrar em Lisboa devido ao mau tempo. “Não queria que ele esperasse por mim, sendo a primeira vez dele na Europa. Como trabalhamos longe um do outro, eu em Berlim, e ele em África, decidimos encontrarmo-nos a meio caminho aqui em Portugal, só que eu vim mais cedo do Porto para cá porque o avião era mais barato”, diz desviando o olhar vezes sem conta à espera de uma novidade. Os dois arquitetos conheceram-se no país natal de Gideon, em Cape Coast, a 5 de Setembro deste ano que agora termina, numa colaboração entre estúdios. Deram de caras um com o outro noutro aeroporto, em Acra, quando o ganês estava à espera de um grupo de estudantes da Universidade de Artes Aplicadas de Viena, onde Ioana se incluía. 25 dias depois, ela teve de partir, deixando para trás aquele mês durante o qual nenhum dos dois “falou sobre os sentimentos um pelo o outro”. Não houve sequer oportunidade para abraços, beijos ou para fazer amor. Só a internet, umas mensagens carinhosas e pouco mais.
Quando perdemos Ioana de vista, mergulhada pelo meio de outras pessoas como ela, percebermos que a espera tinha chegado ao fim. Antes de abraçar Gideon com muita força, disse que este reencontro “era um milagre de Natal”, com risos à mistura, que os juntaria até à passagem de ano. Milagre? Mais um daqueles clichés que teimam em entrar pela nossa vida mas que perdem força no caminho, menos para os crentes. Não, isso não existe, pensa o leitor. “Pode enviar-me a fotografia? É que acabou de apanhar o nosso primeiro beijo”, revelou a romena, para a fotógrafa que não conseguiu esconder a surpresa. Ora bem, o espírito natalício decidiu invadir a Portela e tentar convencer toda a gente que esta época é mesmo especial.”It has been some story”, finalizou Gideon num inglês meio corriqueiro. Parece que sim.
Na Colômbia é que se está bem
O calor destas gentes dá vontade de apanhar um pouco do frio que se sente na rua. Na entrada, as filas de táxis arrastam-se, e o cigarro faz companhia. Troca-se lume por “obrigados”. “Tem isqueiro?”. “Não, só isto”, mostrando-se fósforos grandes. A conversa desenrola-se e, ao acaso, João confessa que chegou de Bogotá, na Colômbia. São conversas de circunstância que, às vezes, ganham vida. Mas não se estranha este estilo despreocupado. A camisa aberta denuncia-o, é um homem que está habituado a ambientes quentes e as temperaturas mais baixas pouco ou nada lhe dizem. Está sozinho, à espera da mãe que o vem buscar para passar o Natal em casa, algo que acontece desde 2012, ano em que voou para as Américas em busca de um trabalho melhor. É o único de três filhos que emigrou, para desgosto da mãe. “Estive lá num casamento de um amigo durante três semanas, regressei a Portugal, decidi despedir-me da minha agência de publicidade e ir para lá”, diz o lisboeta. O cenário cá “estava negro”, mas na América do Sul mudou drasticamente: “agora sou produtor de anúncios, recebo muito melhor e as pessoas trabalham muito bem”.
A imagem que os europeus têm dos colombianos é destruída por este português, que esgota os elogios aos seus novos conterrâneos. “São boas pessoas, muito queridos, nós cá na Europa pintamo-los de uma maneira que não é real”. E esta adoração já ganhou forma, João arranjou uma namorada latina que desta vez ficou em Bogotá, mas que no passado já passou a consoada em terras portuguesas. “Adorou”. João também adora, e por isso é que “reserva sempre férias, uma vez por ano, para voltar cá”, não ponderando, para já, um regresso. “Talvez possamos vir os dois, mas logo se vê”, desabafa, não demonstrando qualquer fé na mudança de governo em Portugal: “consigo estar a par de tudo, leio os jornais online, e acho que esta mudança não vai melhorar nada”.
A 4 de Janeiro rumará para as Caraíbas com a sua namorada, mas neste momento quer terminar o cigarro colombiano e abraçar a mãe. Ainda sobra tempo para perguntar: “Mas tem de haver qualquer coisa má na Colômbia não?”. “O álcool é mais caro, mas não, não tenho saudades do nosso tabaco, é muito mais barato, tal como arrendar uma casa, entre outras coisas”. Cigarro apagado, agora é esperar.
Ao entrar novamente no terminal, voltamos ao nosso filme. Mas uma novidade: cães. Alguns, também muito irrequietos, espalham-se por entre as pessoas, abanando a cauda. Uns minutos depois, está explicado. Não só namorados, amigos, colegas, irmãos ou maridos e mulheres regressam, são também donos. Se não queria mais clichés, agora leva com mais um – “os cães são os melhores amigos do homem”. Não se sabe se será sempre, mas no aeroporto, está justificado. Como não se pode arranjar declarações dos animais, sem ser uns “uofs” ou “auuus” excitados, os humanos continuavam a ser a fonte de informação mais segura.
Aviões de Frankfurt, Bruxelas, Liverpool, Istambul, São Paulo, Paris e Dublin aterravam sem parar porque o sol decidiu dar uma ajuda. E os familiares agradeciam. A meteorologia não quis desfazer o espírito. “Bruno! Não é ele?”, gritou uma senhora para o seu neto, que esperava pelo filho emigrado em Londres. Não, era André, informático de 38 anos, que foi apanhado pela filha, com quase dois anos, que o envolveu em beijos. Regressava da Irlanda, onde trabalha desde Agosto deste ano. “Fico lá o tempo que me quiserem, aqui havia muitas incertezas, muitas contas para pagar”. A mulher, Alexandra, psicóloga de profissão, que o foi buscar, em Novembro pegou na pequena e visitou-o. Voltam na passagem de ano. Mas o Natal passa-se cá. A ideia é, um dia, pegar na bagagem e levar a família inteira: “vamos ver se as coisas correm bem”, afirma o pai, que vai recebendo festas da filha, a sorrir. A mãe é mais assertiva, está a deixar tudo organizado no trabalho para poder partir já em 2016. E a filha, já percebe o que se passa? “Já, percebe tudo”, finaliza André. Os três não perdem muito mais tempo na Portela, foi pouco tempo separados, mas vá, família é família.
Já está tudo convencido de que “O Amor Acontece” mesmo ou ainda não? Não? Muito bem. Vamos então pegar em mais um cliché: celebridades. Pois é, se julgava que as celebridades não eram capazes de ir buscar os familiares ao aeroporto porque estão demasiado ocupados consigo mesmos, desengane-se. Jornalistas como Paulo Magalhães da TVI ou atores como Ricardo Peres dos Commedia a La Carte também tiraram a manhã desta terça-feira para fazerem parte desta moldura ansiosa.
É dessa moldura que surge uma avó. Não é figura pública, mas quis fazer parte desta onda de lágrimas e sorrisos. Teresa, com um ar envergonhado mas curioso, espera pela neta, nutricionista, Maria, de 29 anos, que vem de São Paulo com o marido, onde embarcaram os dois depois de se casarem. Se a avó estava tímida, a mãe Alexandra, habituada a “passar a vida em aeroportos”, estava mais descontraída. “Tenho dois filhos emigrantes, passo a vida aqui, mas também saí cedo de casa com o meu ex-marido para ir com ele para África, por isso sei bem o que isto é”. Despreocupada com os atentados terroristas que têm aterrorizado o mundo, para Alexandra a solução é não impedir os filhos de rumarem para onde bem quiserem: “preocupa-me, claro, mas isso não pode inibir os meus filhos de seguirem com as suas vidas”.
A avó, já perto da neta sair do local de chegadas, confessou uma preocupação: “ela não gosta muito do Brasil, mas o marido queria tanto, que acabou por ir com ele”, finalizou. Quando o casal chegou, queimado na cara pelo sol brasileiro, a mãe, feliz por voltar a ver a filha, quis usar do humor para afastar o fantasma de um número que tem assustado muita gente, os 110 mil emigrantes nos últimos quatro anos: “olha os emigrantes tão giros e bronzeados, e nós aqui!”.
Pronto, já percebemos que os portugueses usam o termo saudade como mais ninguém, e que se olhássemos bem para o tal final do filme-que-ninguém-viu-mas-que-toda-a-gente-conhece, encontraríamos rostos conhecidos. Então e a música, pergunta o leitor. Se há efeitos, cartazes, pessoas, falta o som para embalar a época. A resposta não podia ser mais inesperada e só se entende pela ausência de abordagens grosseiras às fotografias. A banda da PSP deu um concerto do outro lado do aeroporto. Tudo afinado, por Lisboa. Bolas para a lamechice, o Natal veio para ficar.
A lareira lá de casa é insubtituível
Será que Sá Carneiro gostava do Natal? É uma boa pergunta, mas em nada nos ajuda agora. No aeroporto batizado com o seu nome no Porto, o comum não faz sentido: são os mais velhos que partem e que voltam agora. João, de 62 anos, vai passar o Natal à sua terra, em Arcos de Valdevez. Algo que não faz desde 2009, quando emigrou para o Brasil – que “não correu como esperado” -, e passou para França, Paris. Traz o filho de um ano e a mulher, com quem partiu há quatro anos e casou este verão, e também muitas “saudades da lareira lá de casa”, algo que não conseguiu ter na nova morada francesa. Paula, filha de um primeiro casamento, foi buscá-los. “Temo que os meus filhos e netos tenham também de partir porque as perspetivas em Portugal são cada vez piores” explica, depois de dizer que tem outro filho, com 35 anos, emigrado no Dubai, desde a mesma altura em que decidiu mudar de vida. Nesta sua previsão mais triste há, no entanto, boas notícias. Por um lado a vida em França “em boa hora” lhes deu condições para formar família, há custa de muito trabalho – onde se trabalha o dobro do que em países como o nosso – e se pagam “impostos até para dormir”, como brincam os franceses. E por outro, a surpresa da patroa da sua mulher, que lhes ofereceu o bilhete para Portugal. “Esta é data é da família, e por isso estou muito contente por poder regressar”, diz.
É quase impossível não perguntar sobre os atentados no Bataclan. João mora a um quilómetro do bairro onde tudo aconteceu, passando lá todos os dias, e trabalha muito perto do Stade de France, onde rebentaram duas bombas. “Estava a chegar a casa, ouvimos as explosões e não saímos mais dali”. Os dias seguintes foram de “angústia e medo”: “notava-se uma desconfiança de tudo e de todos, o medo apoderou-se”. Apesar de também ter sentido receio, continua a levantar-se todos os dias às seis da manhã para ir trabalhar em hotelaria. A única coisa que o assusta é o metro. “Tenho muito medo de andar de metro, mas pronto, tem de ser”.
Gostava de voltar para a terra à qual dedicou grande parte da sua vida, mas por agora é impossível. E os políticos, para este homem do Minho, são os principais responsáveis. “Os políticos deviam ser todos emigrantes, no estrangeiro temos todos muito má imagem deles”. Fica o conselho para o ex-primeiro-minisro Passos Coelho e para o atual, António Costa.
É uma chatice quando as teorias que nos custam mais a acreditar são comprovadas. A do filme que nos trouxe aqui ficou, até prova em contrário, completamente esclarecida. Sim, os aviões vão e voltam todos os dias com milhões de pessoas a bordo. Sim, é sempre emocionante quando revemos alguém de quem gostamos muito. E se o filme incluir música, e os cartazes e animais puderem ajudar à festa, ainda melhor.
Estamos em Dezembro, é Natal, é final de ano, e para além de todo o frenesim que se gera em centros comerciais com compras de última hora e preparativos para o réveillon, pode finalmente descansar com aqueles que se dispõem a ir buscá-lo. E a esperar por si, seja quanto tempo for preciso, numa manhã nebulosa de inverno. Aqueles que esperam por si desde o instante em que se foi embora. E agora é melhor parar com a lamechice, não vá a caixa de lenços acabar e os chocolates derreterem com as lágrimas. Ah, e porque “O Amor Acontece” começou. Apanhámo-lo finalmente leitor. Virou-se para a televisão não foi? Não? Então olhe, Boas Festas, seu mentiroso guloso.