Bater às portas do privilégio

Em Between The World and Me Ta-Nehisi Coates dirige ao filho de 15 anos uma carta  sobre o estigma que é ser negro nos EUA e desmascara as mentiras e a hipocrisia do Sonho Americano.

Num momento em que as tensões raciais e a própria questão da desigualdade económica obrigam a uma reapreciação de todo o quadro de justiça social nos EUA, um escritor negro saltou para primeiro plano com uma furiosa denúncia da hipocrisia que dá pelo nome de Sonho Americano. Between the World and Me, uma meditação sobre a experiência de se ser um negro nos dias de hoje naquele país, ganhou o National Book Award em 2015 na categoria de não-ficção e catapultou o seu autor, Ta-Nehisi Coates, para o estrelado, ofuscando completamente o premiado na categoria de ficção.

Numa cultura obcecada em capturar o futuro no presente, sob a forma de dívida, entre projecções e juros, é curioso notar que uma das conquistas do pensamento contemporâneo surge com a noção de que, do mesmo modo que o futuro não deixa de ser uma incógnita, algo de insondável, cada novo passo transforma, às vezes radicalmente, o passado. Também este é um terreno movediço e não pode, por isso, ser encarado como algo estanque.

Muitos dos autores que hoje surgem como incontornáveis são precisamente aqueles que nos lembram que nenhuma conquista do passado é definitiva. Que os passos mais audaciosos das nossas sociedades fixaram marcos que não podem deixar de ser defendidos.

Isto tem especial relevo no campo dos direitos civis, da luta pela igualdade tanto social como económica, e desse conflito que se mantém hoje tão atual como sempre, a luta de classes. Há um quarto de século, quando esta já parecia ter-se convertido num cliché ultrapassado e excessivamente conotado com a doutrina marxista, a escritora Marguerite Duras deixou um entrevistador atónito quando questionada sobre qual o valor da esquerda que era necessário promover urgentemente: «A luta de classes», respondeu. «Aparte restabelecer a luta de classes, não vejo outro valor».

O desafio da intelectualidade não é, portanto, o de refazer a cada momento um inventário das tendências e balanços que vestem a ilusão da passagem do tempo, mas não permitir que os temas essenciais cicatrizem, impedir recuos

A inspiração de Baldwin
 O livro de Coates assume a forma de uma carta dirigida ao filho adolescente – a tradução portuguesa (Entre mim e o Mundo) tem o lançamento previsto para o final de fevereiro, pela mão da nova editora Ítaca. A inspiração veio da releitura do livro The Fire Next Time, de James Baldwin, o consagrado autor que assumiu preeminência durante a luta dos direitos civis no início da década de 1960, e que é tido como o escritor negro que levou a América branca e privilegiada a interessar-se pela situação dos negros, o que pensavam e como se sentiam no seio daquela sociedade.
O livro de Baldwin tomava balanço e nas suas páginas iniciais não se desviava do tom paternal, aconselhando o sobrinho de 15 anos sobre a forma mais digna de encarar o mundo em que nasceu marcado pela diferença no tom da pele, esse insuperável estigma. Surgiu em 1963, enquadrado no conturbado período em que um movimento de jovens activistas enfrentaram o preconceito e desafiaram uma ordem racial que subalternizava e humilhava os negros face aos brancos.

Semelhante na abordagem, o livro de Coates é bastante diferente na mensagem. Ao escrever ao seu filho, também de 15 anos, o esforço já não é simplesmente o de encorajá-lo a lutar para transformar o país. Não há o mesmo grau de optimismo. Este pai procura acima de tudo levar o filho a ver para lá do véu dos discursos, das boas intenções e até das leis que conferem igualdade de direitos, para lá das conquistas do passado e que o ‘Sonho Americano’ absorveu nos seus romances e lendas, que Hollywood fortificou. Coates prepara o filho para a injustiça racial com que irá confrontar-se, uma realidade bem presente e não um espectro vencido, algo que continua a passar de geração em geração, como um legado.

«Escrevo-te no teu 15º aniversário», diz Coates nas primeiras páginas. «E por esta altura deves ter-te apercebido, se não o sabias já, que os departamentos de polícia do teu país foram dotados da autoridade para destruir o teu corpo… Eu aviso-te agora que a pergunta de como se deve viver dentro de um corpo negro, num país capturado pelo Sonho, é a grande questão da minha vida, e a busca de uma resposta, acabei por entender, é a própria resposta».

Leitor voraz com pouca paciência para a escola
Mais que um porta-estandarte, Coates é um intelectual que desafia a própria ideia da evolução das sociedades. Um escritor que cresceu nas ruas de Baltimore, numa família de sete irmãos, filho de uma professora do secundário e de um bibliotecário. Um leitor voraz, com pouca paciência para a escola e o programa curricular, a sua trajetória fica marcada por um feroz auto-didatismo, numa juventude que se esquivou por pouco aos dramas que a violência encena naquelas ruas ou às cadeias e prisões que são os grandes palcos erguidos para conter a dedicação dos melhores atores. Uma voz que escapou para contar, que ganhou projeção sem desenvolver um filtro, capaz de ser crua e ao mesmo tempo elegante, até poética, de representar o mundo de forma às vezes radical, sem ceder a generalizações ou perder o pé. Humilde e ao mesmo tempo desafiador, aos 39 anos Coates é um pensador de uma nova estirpe, alguém que não se confunde com o espetáculo de opinião que os media promovem incessantemente. Um negro com uma mensagem que não é reconfortante, que é até bastante dura, e que, no entanto, cada vez mais pessoas querem ouvir.

Ao contrário de Baldwin, Coates não submete a sua luta, o seu espírito inquisitivo, traça poderosas ilações e reavalia o passado, libertando-o do efeito da pátina e da neutralização dos transes sonhadores. É a uma voz que parece indicar que não há paz, apenas luta, o esforço para despertar a sociedade de um sono induzido. As questões que levanta não têm todas resposta. A utopia não serve. Àqueles que estão na mó de baixo, aos negros de pele e aos outros, resta não se confundirem com a noite escura, revoltarem-se, lutar.