Os amigos

Nos verdes anos em que a amizade define a cor e os contornos do mundo, tive a sorte de ser desafiada por aquela que eu considerava então a minha maior amiga: traiu-me ostensivamente, de todas as maneiras e feitios.

Não lhe perguntei porquê; em assuntos sentimentais nunca vou à luta: penso que aquela pessoa não era para mim, monto-lhe um funeral completo dentro da minha cabeça, paz à sua alma, e nunca mais a vejo, mesmo que a encontre e até lhe diga bom-dia, como quem faz uma vénia diante de uma lápide tumular.

Hoje organizo esses funerais mentais à moda das contemporâneas multinacionais do ramo, mas sem custos: rapidez e eficiência, cafezinho e bolachas, ámen.

Se alguma coisa aprendi com a idade, foi a não me deleitar com o sofrimento, isto é, a não gastar cera com ruins defuntos. A vida é curta – aos cinquenta e tais tenho obrigação de ter percebido pelo menos isso.

Nos idos dessa primeira grande desilusão – descobrir a falsidade de um amigo é muito pior do que perder um amor, pelo menos para mim, porque o erotismo tem razões que a razão desconhece – uma amiga comum decidiu informar-se da causa das malfeitorias dessa amiga perdida.

Era esta: irritava-a a minha insistência em ver a vida como alegria e possibilidade ("um filme de Walt Disney", terá dito ela, com incontido desdém) e queria ensinar-me que a maldade existe. Ter-lhe-ia respondido, se me tivesse predisposto a perder tempo nesse diálogo, que para isso me bastaria o Telejornal, ou a leitura do grande Dostoievski.

Hoje, entendo que ela estava tão zangada com a vida (e até por boas, embora não inelutáveis, razões) que tudo o que eu canhestramente fazia por ela lhe caía no coração com o estrépito pavoroso de uma esmola. Não podia perceber que eu a admirava e amava, porque não dispunha de amor nem admiração por si mesma. Ela idolatrava a inteligência acima de todas as coisas – e eu, com uma sensação de burrice indómita ao lado dela, quase caí nessa idolatria.

Essa primeira desilusão teve a vantagem de me aferrar à felicidade.

Inicialmente por raiva (que é um excelente combustível, digam o que disserem): eu não deixaria que a escuridão em que aquela rapariga persistia tomasse conta da minha vida.

Devo-lhe, afinal de contas, a especial persistência do meu caráter solar; e, se é verdade que esta determinação para o júbilo, para a camaradagem e para o bem comum me tem trazido uma interessante coleção de dissabores, orquestrados pela estúpida inveja que desde sempre viceja na amenidade do clima português, não é menos verdade que os encontros têm sido sempre maiores e melhores do que os desencontros, e na amizade tenho encontrado luz e alento em todos os momentos difíceis.

Não tenho cinco mil amigos, não frequento o Facebook – e, quando o vou espreitar, pasmo com os exaltados ‘gostos’ que as pessoas atribuem a frases, eventos ou pessoas que na vida real criticam e moem à boca pequena.

Gosto do Twitter porque é um bate-boca rápido, incisivo, político e frontal, sem espaço para trocas de favores ou pedidos de prefácios e cunhas.

Celebro com um amor crescente cada um dos amigos autênticos que possuo – e por isso, de ano para ano, tenho vindo a desembaraçar-me dos conhecidos-que-passam-por-amigos, e são a maioria: os que só nos procuram quando precisam de um favor, os que se recusaram a testemunhar por nós, os que se mantiveram ao largo nas épocas difíceis da nossa vida e aparecem, arfantes de saudade, quando adquirimos alguma importância social.

A palavra reciprocidade tornou-se o meu farol. Pronuncio-a devagar a cada início de ano – e o sorriso daqueles que amo e que me amam brilha como um sol inextinguível.

inespedrosa.sol@gmail.com