Vamos à conversa até à Matola, arredores de Maputo, rumo à faculdade de Veterinária e Ciências Animais da Universidade Eduardo Mondlane. Ali perto da rotunda da Junta. É ali que fica a sede local da APOPO, prefabricado escondido entre árvores, imaculadamente pintado de branco, portas verde-garrafa.
“Quando comecei a trabalhar aqui todo o mundo gozava comigo. Senti muito preconceito, os meus amigos achavam nojento. A verdade é que até eu tinha muito má ideia dos ratos. E tinha medo. Tive de treinar como os pegar para que não me mordam, não podemos pegar pela cauda, tem de ser pela barriga. Hoje em dia vejo-os quase como meus amigos, irmãos. Os meus filhos. Até gostava de levar um comigo para casa”, comenta Atilano Mendonça, 23 anos, um dos técnicos de treinos deste centro de deteção da tuberculose.
Por aqui são testadas diariamente 140 amostras, provenientes de 14 unidades de saúde da região de Maputo. Desde a inauguração deste centro, em 2013, foram avaliadas 52,032 amostras. Tudo com apenas nove ratos. Mesmo assim, “muita gente não sabe o que fazemos aqui, ficam admirados com a ideia de que um rato pode detetar tuberculose”, conta outra técnica, Cátia Souto, 27 anos, envolvida no projecto desde o seu lançamento, em 2012, ano em que esteve em formação na Tanzânia.
O melhor amigo do homem é o rato
A história da APOPO resulta da vontade de um homem, o belga Bart Weetjens, determinado que estava em fazer parte da solução do flagelo das minas antipessoais. Proprietário – e apaixonado -, desde criança, por ratos, que tinha como animais de estimação, encontrou um artigo sobre as capacidades olfativas destes animais. Um mais um dá dois. Por que não utilizar ratos na deteção de minas?
Um ano mais tarde, em 1996, apresentou a sua ideia a Mic Billet, fundador do Instituto para o Desenvolvimento de Produtos e ex professor de Bart, que resolveu financiá-la. Mas foi através do professor Ron Verhagen, especialista em roedores da universidade da Antuérpia, que o projeto ganhou os seus contornos. Verhagen acreditou de imediato no potencial dos roedores para detetarem minas, justamente pelas suas capacidades olfativas, e indicou como melhores candidatos os Cricetomys Gambianus, não apenas pela sua longevidade mas porque a sua origem era o continente africano, que também seria o seu principal palco de ação.
A APOPO foi oficialmente criada a 1 de novembro de 1997. Oito meses mais tarde chegavam os primeiros ratos, provenientes das montanhas da Tanzânia, com o objetivo de desenvolver, num centro na Bélgica, reprodução em cativeiro e um centro de treinos. Em julho de 1999 havia finalmente condições para levar todo o projeto para onde ele realmente deveria estar: as montanhas de Uluguru, na Tanzânia, casa destes ratos.
Em 2002 começaram os primeiros testes para a deteção da tuberculose, ainda antes de os primeiros ratos detetores de minas serem efetivamente postos no terreno. Isso aconteceu pela primeira vez justamente em Moçambique, um dos cinco países mais minados do mundo, em 2003. Os ratos da APOPO foram levados até um terreno que já tinha sido estudado através de detetores de metais. Os ratos identificaram todas as 20 minas que ali se encontravam. Por um lado, o olfato apurado permite-lhe reconhecer o cheiro das substâncias que compõe a pólvora, por outro, o facto de serem leves impede as minas de rebentarem.
Em novembro de 2008, depois de seis anos de testes, fica finalmente provado que os ratos são capazes de detetar tuberculose, e poucos meses depois já tinham sido avaliadas 50 mil amostras e identificados mil doentes, cuja condição não tinha sido identificada através dos métodos tradicionais.
Perante estes resultados, a APOPO decidiu levar até Moçambique – onde o processo de desminagem corria de vento em poupa – o seu programa de deteção da tuberculose, e o laboratório e centro de diagnóstico abriu portas em junho de 2013.
Com o centro de treino e pesquisa sedeado na Tanzânia, e além dos escritórios nos EUA, Bélgica e Suíça, a ONG está neste momento presente em cinco projetos – Vietname, Laos, Camboja, Moçambique e Angola -, empregando cerca de 900 pessoas.
Os números não podiam ser mais evidentes. Um rato pode procurar 200m2 de terreno minado em 20 minutos, um ser humano munido de um detetor de metais demora quatro dias a cobrir a mesma superfície. Durante os anos em que a APOPO esteve em Moçambique em busca de minas, os hero rats analisaram 11,096,427 m2 de terrenos. Nestes foram encontradas e neutralizadas 13,294 minas pessoais, 29,029 pequenas armas e munições, e 8597 bombas.
Uma ação fundamental para que, neste ano que agora terminou, Moçambique pudesse ser oficialmente declarado livre de minas, no passado dia 1 de dezembro. Foram precisos 22 anos desde o final da guerra civil. “O maior sucesso é que o ano 2015 será o primeiro em décadas sem novas vítimas de minas antipessoais”, declarou Pedro Comissário, embaixador moçambicano perante a Organização das Nações Unidas. Um número que, no entanto, não apaga da memória as mais de dez mil vítimas destes resquícios da guerra.
Mas a vida é toda para adiante. E se Moçambique já não precisa de ratos para a desminagem do país – a APOPO mantém apenas uma pequena missão para assegurar alguma situação de última hora – há outros países que continuam a necessitar. É o caso de Angola. E foi para lá que este pequenos-grandes heróis foram.
Amostra entra, amostra sai
O dia começa bem cedo no centro da APOPO. É um entra e sai. Entram novas amostras, saem resultados. Atualmente, aqui são analisadas amostras provenientes de 14 unidades sanitárias – das quais quatro são hospitais e as restantes centros de saúde. Em Novembro teve início um estudo-piloto com a cadeia da Machava, prisão de alta segurança de Maputo, que visa perceber os focos de tuberculose na prisão. Seguir-se-ão as prisões centrais de Inhambane e Gaza.
São três os motoristas que fazem estas recolhas. Chegam de motorizadas vermelhas, lustro puxado. Assim que descarregam as amostras do dia, começa o trabalho no centro. O primeiro passo é na sala da base de dados, onde é feita a etiquetagem das amostras. Daí seguem para a autoclavagem, que assegura que não há risco de contaminações.
Por esta altura, já os nove ratos desta unidade se preparam para entrar em ação. No turno da manhã são usados quatro ratos, no da tarde cinco.
Na sala de testes, o trabalho é maquinal. Catorze barras com dez amostras cada uma. Põe barra, tira barra. Numa espécie de aquário, o rato, um de cada vez, sabe bem o que tem a fazer. Cheira a amostra, três segundos. Se segue em frente está tudo bem, se começa a arranhar com as suas pequenas patinhas, a amostra é positiva.
Das unidades sanitárias chegam amostras para serem estudadas, mas também outras, já identificadas como positivas, para servirem como uma espécie de controlo de qualidade. E também são enviadas amostras que foram diagnosticadas como negativas. “Muitas vezes o bacilo não é detetado nos hospitais pois ainda tem uma concentração muito baixa. Ainda assim, os ratos conseguem detetá-la”, explica a técnica Cátia Souto. “Tivemos um caso de um estudante de Veterinária, aqui da universidade Eduardo Mondlane, que há três anos que ia ao hospital porque não se sentia bem. Fazia análises e exames, e nada. Quando finalmente a sua amostra foi testada pelos nossos ratos, deu positivo para a tuberculose. Este rapaz, que se fartava de gozar com os nossos ratos, agora diz que foram eles que lhe salvaram a vida”.
Não é caso único. Volta e meia por ali aparecem pessoas. Querem ver os ratos, não acreditam que são mesmo roedores que diagnosticam tuberculose. Outros vão em busca de ajuda. “Uma vez apareceu-nos um casal com uma filha de cinco anos. Estavam desesperados. A criança tinha sido diagnosticada com tuberculose, submetida a tratamento e o hospital tinha-a declarado tratada. Mas ela continuava com sintomas. Suplicaram-nos que a víssemos. Acabámos por abrir essa exceção e efetivamente a menina ainda tinha tuberculose”.
Mas foi mesmo uma exceção.
A equipa da APOPO quer trabalhar em parceria com as unidades de saúde e não substitui-las. Uma colaboração que, no início, não foi propriamente pacífica. “Os técnicos de laboratório começaram por rejeitar o que fazíamos aqui. Acho que se sentiram ameaçados. Não entendiam como é que os ratos conseguiam detetar coisas que eles não conseguiam nos laboratórios e recorrendo a metodologias mais modernas. Até eu senti o mesmo, mas depois estive 35 dias na Tanzânia e vi o que os ratos conseguiam fazer”, recorda Fernando Zita, um dos técnicos de laboratório envolvido neste projeto desde o ser arranque. “Hoje em dia explico aos meus colegas técnicos que os ratos não vieram para tirar o trabalho a ninguém e que nem questionam a qualidade do seu trabalho. Quanto muito questionam a qualidade da tecnologia usada”.
Uma família real de ratos
Astrid é a recordista ali do sítio. Deve o seu nome à rainha da Bélgica. É rara a amostra que falha. Já Harry é o mais rápido. E também é ‘primo’ da realeza, deve o seu nome ao príncipe inglês. Basta-lhes sete a dez minutos para analisarem 140 amostras.
Desde as três semanas de vida que são treinados para fazer isto, num treino intensivo que dura seis meses. Ainda assim, é muito fácil destreinar um rato, por isso tudo tem de ser cumprido ao pormenor.
A cada amostra positiva enviada pelo hospital que os ratos confirmem o diagnóstico, ouvem um clique e correm para uma das extremidades do aquário em busca de uma recompensa: uma ração granulada misturada com banana e abacate. Só comem durante estas sessões. “E tem de ser doseado, que de barriga cheia não trabalham”, conta Cátia. Os cinco treinadores que aqui trabalham conhecem as manhas destes ratos melhores que ninguém. Cada seringa de alimentação leva 20 gramas, no total cada rato come 40 gramas por dia. Duas horas depois de cada sessão de identificação de amostras, os ratos recebem mais comida. “Assim não associam ao trabalho. Se déssemos a comida logo de seguida eles achavam que podiam não trabalhar porque recebiam sempre comida”.
No laboratório ouve-se “Take me to Church”, de Hozier. Enquanto se contam amostras, cantarolam-se sucessos norte-americanos. “Mas não dá para distrair! Há vários patamares de controlo para garantir que não há trocas”. É aqui que acaba o trabalho dos treinadores e começa o trabalho dos técnicos de laboratório.
No dia seguinte, tudo recomeça. Entram novas amostras, saem resultados. E Astrid, Harry, Ginton e os amigos voltam à ação. Não sabem, são só ratos, os tais que são os primeiros a abandonar o navio. Mas são eles que estão a ajudar a deitar por terra o preconceito associado à tuberculose, em Moçambique. Em terra com alta percentagem de infetados com o vírus da sida, a tuberculose é considerada a doença que com ela anda de mão dada. E com isso vem, claro está, a vergonha.
Muitas vezes, perante os primeiros sintomas, os pacientes dirigem-se ao hospital para serem testados. Mas “está fila”, “tenho de djobar”, a paciência é pouca e acabam por nem aguardar pelos resultados nem deixar os contactos certos para depois serem informados dos resultados. “Não querem estar ali à espera, começam a refilar e muitas vezes são os próprios enfermeiros a dizerem que está tudo bem só para não os terem de aturar”, diz Cátia Souto. Com a APOPO, o paciente só tem de se deslocar a uma unidade de saúde, deixar uma amostra e os dados corretos e ir para casa. No dia seguinte terá os resultados. Sem vergonhas, mas com tratamento. Só em 2013 foram detetados 556 casos adicionais de tuberculose, que não tinham sido detetados pela metodologia tradicional, num total de 18,475 amostras vistas nesse mesmo ano.
“Então, senhor Joaquim, apanhou muito trânsito para voltar para aqui?” “Normal. E isso dos ratos, menina? É mesmo sério?”. É, pois. Contra factos não há argumentos. “Então se calhar podiam treinar os ratos para encontrar a sida, isso, sim, é que ainda precisamos de muita ajuda”. Mesmo que seja ajuda de rato.