Com efeito, entre as explicações que Santos Silva deu ao juiz de instrução Carlos Alexandre para o surgimento de parte dos 23 milhões de euros no UBS, que o MP diz pertencer a Sócrates, figura um alegado lucro de 6,5 milhões de euros com um negócio de salinas em Benguela, Angola, no qual seria sócio de António Pinto de Sousa – um tio do ex-primeiro-ministro que emigrou para aquele país na década de 50.
Contudo, segundo o SOL apurou, um dos filhos de Pinto de Sousa – de nome próprio António, tal como o pai – foi arrolado como testemunha e afirmou aos investigadores que Santos Silva nunca foi sócio de nenhuma exploração de salinas da família naquela região do litoral de Angola. Esse primo de Sócrates afirmou ainda que a única salina pertencente à família em Benguela acabou por ser vendida à Escom, empresa do Grupo Espírito Santo, e que também nunca teve Santos Silva como sócio.
Segundo primo tem mandado de captura
Quando foi inquirido pelo juiz, após a detenção, em novembro de 2014, Santos Silva entrou ainda noutra contradição relativa às salinas angolanas, ao referir que no negócio com a família Pinto de Sousa contava com uma participação de 50% numa unidade de produção de sal chamada Tchiome, na província da Baía Farta, a cerca de 40 quilómetros da propriedade do tio de Sócrates. Mas, na realidade, esta salina, que era uma concessão do Estado atribuída à família Pinto de Sousa, apenas foi constituída em 2012, quatro anos depois da entrada dos 6,5 milhões de euros na conta de Santos Silva na Suíça.
Ainda segundo as explicações de Santos Silva, no final dos anos 90, um outro primo de Sócrates – José Paulo Pinto de Sousa, irmão de António, que nos últimos tempos tem residido em Angola e sobre quem as autoridades nacionais emitiram um mandado de captura internacional – ter-lhe-á pedido para ajudar o pai, que estava a atravessar uma crise financeira. Nessa altura, disse Santos Silva, como dispunha de muita liquidez e apesar de nada entender do negócio, decidiu injetar 200 mil contos (um milhão de euros) na aquisição de metade da Tchiome, que garantiu ser propriedade da família Pinto de Sousa. A proposta passava por, uma vez vendida a propriedade, Santos Silva ser ressarcido do capital investido acrescido da mais-valia.
Quase uma década depois, entre 2006 e 2007, os negócios acabaram por vencer a amizade: na versão da defesa de Santos Silva, a família Pinto de Sousa teria recebido da Escom uma proposta de compra da Tchiome por nove milhões de euros. E, sem lhe ter sido comunicado o valor do negócio, teria sido ressarcido em 2007 com dois milhões de euros do investimento, somando um ano depois mais quatro milhões e meio em mais-valias.
O empresário amigo de Sócrates quis assim sustentar o registo de uma transferência de capital que, segundo os investigadores judiciais, foi feita por Hélder Bataglia, presidente da Escom, para uma offshore de José Paulo Pinto de Sousa – que serviu para fazer chegar o dinheiro a José Sócrates.
Mais contradições
No entanto, segundo a documentação reunida pelo SOL no ano passado, numa investigação em Angola, não só o nome de Santos Silva não surge nos registos oficiais angolanos da Tchiome como, à data a que se reporta o empresário sobre o reembolso do total do negócio, apenas existia um contrato-promessa entre a Escom e a família Pinto de Sousa para a aquisição de 70% da única salina da família, a APS (António Pinto Sousa Lda.). O valor inicial de aquisição desta quota proposto pela Escom era de 13 milhões de dólares e o objetivo passava pela construção de um condomínio de luxo na área da exploração de sal, o que levantava vários obstáculos a nível da estratégia governamental para aquele setor.
Em Benguela, a região do país com maior produção do minério, o terreno junto ao mar à saída da cidade está em zona protegida. Para que a construção avançasse, a APS teria de obter do governador de Benguela uma autorização para transferir a salina para outro local. Aliás, num relatório operacional da Escom de 2010, a empresa reconhecia a missão complicada que a APS tinha entre mãos e propôs mesmo aumentar o valor inicial da oferta em mais dois milhões de dólares, uma vez que «os custos e transferência da unidade de produção de sal para a província do Tchiome serão superiores ao previsto».
Assim surge a salina de que Santos Silva diz ter sido sócio, mas que acabaria por ser concessionada pelo Estado angolano apenas dois anos depois. Além disso, segundo os documentos a que o SOL teve acesso, na sociedade criada para receber os trabalhadores e a unidade de produção situada em Benguela apenas constam como sócios José Paulo Pinto de Sousa e Miguel Bataglia, sobrinho do administrador da Escom. Sociedade, que em 2013, em plena convulsão no Grupo Espírito Santo (GES), passou a ser participada pela Margest – que é detida por uma offshore de Hélder Bataglia. No entendimento do MP, foi através desta offshore que Bataglia, desde 2007, começou a passar capital proveniente de ‘luvas’ relacionadas com o negócio de Vale do Lobo com destino a uma offshore de Joaquim Barroca, vice-presidente do Grupo Lena. Daqui, o capital circulava depois para Santos Silva.
‘Engenharia’ financeira para tapar buraco na Escom
O tempo passou, entretanto, e nem uma pedra foi erguida no projeto de construção desse condomínio de luxo em Benguela, parceria entre a Escom e a APS. A salina do tio de José Sócrates – que com a descolonização regressara a Portugal deixando a condução do negócio com o filho mais velho, António (que agora foi chamado pela Operação Marquês) – ia sucumbindo, sendo cada vez menor a extração e qualidade do sal. A cidade de Benguela crescera até à unidade de exploração de sal, a sete quilómetros da capital, e com ela arrastara a poluição, inimiga número um do mineral.
Em 2013, o GES começava a dar os primeiros sinais de declínio e tentou sem sucesso vender a Escom, um dos buracos do grupo. Entre os homens de Ricardo Salgado e a administração da Escom nasceu um plano: fazer uma operação cosmética para melhorar a imagem das contas do grupo em Portugal à conta de uma sangria do BES Angola (BESA) e despistando assim o Banco de Portugal. Para isso, o BESA entrou na mesma data, 28 de junho de 2013, com 500 milhões de dólares em cinco projetos da Escom em Angola, através de transferências de créditos para sociedades-veículo, por valores surreais.
O malabarismo foi feito de uma assentada e contou com a conivência de amigos. Segundo o SOL apurou, Bataglia – que tem relações de longa data com José Paulo Pinto de Sousa, tendo chegado a viver com uma irmã deste, de quem teve uma filha -, então com apenas 70% da salina para a qual estava projetado o condomínio que não saíra do papel, entrou em conversações com ele mal arrancou a nova estratégia. Apenas 10 dias antes de os empréstimos do BESA às cinco sociedades-veículo criadas pelo GES serem concedidos, Bataglia propôs a José Paulo a compra dos restantes 30% da sociedade do condomínio.
Enquanto isso, José Paulo ficou de falar com a família, que estava com a corda na garganta. A 20 de junho, foi João Salvado, administrador da Escom, quem colocou pressão junto do primo de José Sócrates, recorrendo à metáfora adequada: estavam no fim da navalha. Por esses 30% da sociedade da salina em nome da APS, estavam dispostos a pagar 9 milhões de euros, sendo o pagamento feito segundo a praxis do mundo empresarial: 3 milhões de forma ortodoxa e 6 milhões ‘por fora’. José Paulo acabou por aceitar e, para a Escom obter um crédito junto do BESA no valor de 116 milhões de dólares, foi anexada ao processo bancário uma escritura em que as quotas da APS eram transferidas para uma das empresas-veículo do GES criadas para o efeito, a Enignimob.
‘Ninguém sabia que Santos Silva era sócio’
Em fevereiro de 2015, o SOL constatou, numa deslocação aos terrenos em Benguela, que nada mudara e que os pressupostos da sua avaliação não passavam de um negócio fictício que nunca saiu do papel: um projeto com custos orçamentados de 1,4 mil milhões de dólares e vendas previstas de 1,9 mil milhões numa salina com meia dúzia de funcionários que continua a ser explorada pela família Pinto de Sousa.
António Pinto de Sousa, irmão de José Paulo, que após a ida do pai para Portugal ficara à frente da exploração, também regressara entretanto ao país, deixando à frente da APS o compadre Manuel Rodrigues, com experiência no ramo. Na altura, este sintetizou ao SOL o negócio fictício: «Se isto fosse para um complexo turístico, eles tinham de ter outra salina a produzir para tirar esta daqui. A procura de sal é tão grande que o governo provincial não ia deixar fechar uma salina para fazer um empreendimento turístico». O que João Salvado, da Escom, corrobora: «Esse assunto está envolvido no contrato que tinha um prazo de validade e que esse prazo acabou. Em boa verdade aquilo está como se fosse outra vez nosso».
Quanto à salina Tchiome – de que Carlos Santos Silva se diz sócio -, essa, era apenas um pedaço de terra árida a abarrotar de lixo, tendo como única recordação das congeminações ardilosas um placard de um projeto que também não saíra do papel.
Após a publicação da reportagem no SOL, em abril do ano passado, os protagonistas desdobraram-se em entrevistas para desmentir a investigação. Segundo o SOL apurou, Luís Horta e Costa, administrador da Escom, confidenciou a um expert em consultadoria de comunicação empresarial: «Se a Felícia Cabrita pegar com jeitinho e for à data em que a Escom comprou aquilo à família Pinto de Sousa, de certeza que ninguém sabia que Carlos Santos Silva era sócio».
Aliás, por essa altura ainda José Paulo Pinto de Sousa alimentava sonhos para realizar mais capital. Com Miguel Bataglia, pensou ter encontrado parceiro para investir no projeto do Tchiome e pediram à empresa que fizera um estudo sobre as futuras salinas uma estimativa do património da empresa para negociar com o investidor. Uma pergunta que terá valido um comentário seguido de gargalhada, uma vez que, como tiveram de explicar mais tarde, esse valor «em Angola é relativo, logo quando estamos perante projetos que não existem».