No final dos anos 90, o programa satírico Contra-Informação fez-lhe o boneco, a que chamou ‘Maria de Ninguém’ – pelo seu jogo de cintura na vida interna do partido. Mas alguns mais críticos afirmam que, para não entrar em guerras de fações na Saúde, Belém não tomava medidas polémicas e tentava agradar a todos, gastando dinheiro desnecessário. «Não criou problemas com ninguém. Andou a gerir a imagem, a agradar aos grupos existentes e não fez nada de estrutural», diz um ex-governante socialista. No segundo Governo de Guterres, passa para a pasta da Igualdade – que surge pela primeira vez – sendo substituída na Saúde por Manuela Arcanjo, que no primeiro Executivo fora secretária de Estado do Tesouro, para corrigir os desequilíbrios financeiros no Ministério.
Mas Maria de Belém contesta as acusações de despesismo, nomeadamente feitas pela própria Arcanjo em pleno Parlamento: «Para já, os ministros da Saúde não gastam, porque não são eles que prescrevem medicamentos, nem meios auxiliares de diagnóstico, nem cirurgias, nem nada». Além disso, sublinha que o custo com os investimentos na Saúde passou a ser residual no seu mandato, lembrando que houve algumas modernizações, como as redes informáticas, que não estavam nos projetos originais mas que tiveram de ser incluídas. «Se alguém me sucedeu para corrigir esses desvios não dei conta, porque não foram corrigidos», conclui.
O conflito entre as duas mulheres foi longo e desgastante, e Maria Belém acabará por bater com a porta em 2001 – depois de um relatório do Ministério da Saúde ter vindo a lume, onde se apontavam eventuais promiscuidades no uso de dinheiros públicos numa associação mutualista por si criada – passando a ocupar o seu lugar de deputada, para o qual tinha sido eleita pela primeira vez em 1999.
Desiludida com saída do governo
Diz quem a conhece melhor que ficou dececionada com a forma como saiu do Governo. «Estou sempre disponível para estar e para sair», esclarece hoje. «Aliás, não aceitei logo o lugar de ministra porque não me apetecia a visibilidade que me dava», adianta. Sobre um falado (mas não concretizado) apoio de António Guterres à sua candidatura presidencial, prefere não fazer pressão: «Não peço apoio a ninguém, quem vier é bem-vindo. Não sou o estilo de pessoa que anda atrás dos nomes sonantes a pedir para me apoiarem. A não ser que sinta que há alguma manifestação de interesse da parte deles e os possa contactar, senão deixo sempre ao seu critério. Não sou uma manipuladora de apoios».
Saída do Governo, recusa ser provedora da Santa Casa da Misericórdia, indicada por António Guterres. Diz não aceitar nomeações políticas oriundas do seu partido. Curiosamente, as suas nomeações verificaram-se sempre em Governos laranja.
Na Assembleia da República, foi vice-presidente da bancada, ficando como líder parlamentar interina após a demissão de José Sócrates.
Foi também presidente da Comissão de Inquérito ao caso BPN e aos Estaleiros de Viana do Castelo, e liderou a Comissão de Saúde, cargo que mais recentemente acumulou com a atividade de consultora na Espírito Santo Saúde – o que lhe valeu muitas críticas e acusações de conflito de interesses.
Mas não renunciou aos cargos. Integrou consecutivamente as listas de deputados do PS, sendo cabeça-de-lista pelo Porto até às últimas legislativas, em que não foi candidata, por já estar a pensar em Belém.
Foi membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa quando Vera Jardim era o presidente da delegação portuguesa. Costumavam viajar para Estrasburgo e Paris quatro a cinco vezes por ano. O ex-ministro da Justiça lembra-se dos passeios de autocarro em Paris com passagens regulares em livrarias, nomeadamente uma livraria especializada em Direitos Humanos, dentro do edifício do Conselho. «Não raras vezes alguns emigrantes passavam por ela e elogiavam-na. Eu dizia-lhe: ‘Até aqui tem admiradores!’ Ela tem uma grande simpatia da população», conta o agora seu porta-voz de candidatura.
Na Assembleia da República, Maria de Belém começou por se sentar na quarta fila ao lado de Vera Jardim e Alberto Martins e perto de Manuel Alegre, que ocupava um dos lugares da quinta fila. Uma das suas primeiras batalhas foi a Lei da Paridade, assunto que iniciou como ministra da Igualdade mas que só veria a luz do dia em 2005, já com Sócrates.
Destacou-se na aprovação da Lei Medicamente Assistida, em 2006, e participou ativamente nas leis do testamento vital e do divórcio litigioso. Em tomadas de decisão que envolvem a ética e a filosofia social costuma trocar impressões com o padre Vítor Melícias, o que aconteceu quando deu a cara pelo ‘sim’ nos dois referendos da despenalização do aborto (em 1998 e 2007). É profundamente cristã – «acredito na mensagem de Cristo, não só como religião mas como filosofia» – mas isso não a limita politicamente.
Católica sem ser beata
«A defesa da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) foi um momento de algum rompimento com o tradicionalismo da Igreja, dada a sua condição de católica. Tem o sentido da laicidade na política e essa foi uma prova contra o conservadorismo», afirma o amigo Alberto Martins.
Maria de Belém alia os valores católicos ao socialismo progressista e vive a religião de uma forma pessoal. «É uma cristã de princípio. Não irá à missa todos os dias, é de uma regularidade circunstancial. Uma beata não é, nem eu a aconselharia a ser», revela Melícias, que batizou a filha Helena e presidiu ao seu casamento, em 2014, onde entrou ao som da música Foi Deus, cantada pela fadista Teresa Tapadas. Já no domínio dos direitos LGBT, foi menos entusiasta quando se debateu o casamento gay no Parlamento, em 2008 e 2010, e nunca se mostrou favorável à adoção por casais do mesmo sexo.
Foi guterrista, ferrista – sucedeu a Jorge Coelho, em 2003, para coordenar as eleições autárquicas, nomeada pelo então líder socialista Ferro Rodrigues, integrando o seu Secretariado – e segurista. Foi António José Seguro quem a elevou a presidente do PS, cargo atribuído pela primeira vez a uma mulher. Curiosamente, a primeira mulher a candidatar-se à Presidência da República foi Maria de Lourdes Pintasilgo, que Belém considera um exemplo. Mas se for eleita a 24 de Janeiro também será a primeira vez que Portugal terá uma mulher como chefe de Estado. «Ser mulher não me faz diferente de qualquer homem para o exercício das funções presidenciais naquilo que é a interpretação da função, mas acrescenta-me algo à maneira como estou nas coisas», frisa. Diz que é uma feminista no sentido em que «luta pela dignidade das mulheres». Mas adianta que «há muitos homens feministas». Em 2012 publicou o livro Mulheres Livres, que compila uma dezena de biografias de escritoras, políticas, filósofas e artistas que nas diferentes áreas lutaram pelos seus ideais, ultrapassando obstáculos e abrindo espaço à evolução da sociedade. Foi condecorada em 2005 com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo pelo então Presidente Jorge Sampaio.
O seu percurso no PS fez-se caminhando, quase entre os pingos da chuva. Nunca entrou em conflito aberto com ninguém, nem quando o seu amigo Manuel Alegre – que ela apoiou para a liderança do PS no Congresso de 2004, contra João Soares e José Sócrates – se candidatou nas presidenciais de 2005 contra Mário Soares (o candidato oficial do PS). Recorda Alegre: «Eu disse-lhe numa reunião em Viseu que ‘o inesperado está sempre a acontecer’. Só mais tarde revelaria publicamente que me ia candidatar. A Maria de Belém aceitou a disciplina de voto do partido mas não se envolveu na candidatura de Mário Soares. Esteve sempre perto de mim e foi minha mandatária nacional na segunda candidatura». O poeta lembra as capacidades políticas de Belém testadas durante essa campanha presidencial de 2011, as quais serão postas à prova agora, na sua própria corrida: «Ela é muito difícil de quebrar em debate. Sem elevar a voz, é muito firme e muito comunicativa», diz. «É uma falsa-frágil. Aparentemente frágil, mas de uma grande força interior».
Como presidente do PS, Maria de Belém foi protagonista de um episódio que os costistas dificilmente vão esquecer: antes das primárias, travou a proposta de António Costa para a realização de ‘diretas’, durante a célebre comissão Nacional de Ermesinde, onde alguns militantes socialistas insultaram Costa à saída, dando mais tempo de sobrevivência a Seguro. De Seguro, Maria de Belém afirma que são «amigos, apesar de não ser uma relação de grande intimidade». Sobre Costa é mais cautelosa: «É uma pessoa da mesma geração que Seguro. São mais novos que eu».
Teve muitos pretendentes
De vestido ou saia-casaco sempre impecáveis, nunca de calças, Maria de Belém é muito feminina. A altura nunca foi um problema. «Se gostava de ter sido mais alta? Com certeza que gostava! Mas isso nunca constituiu um drama», disse Maria de Belém ao Negócios. «Nunca senti nenhuma insuficiência. As mulheres medem esse seu desvalor na capacidade de atrair o sexo oposto e sempre tive tantos pretendentes que não podia ser uma pessoa complexada». Chegou a ter um pretendente, um colega brasileiro da Universidade, que a queria raptar e levar para o Brasil. É do estilo sóbrio, mas elegante, que combina a roupa com os acessórios, sempre aprumada, nunca descomposta, sem um único cabelo desalinhado.
O sorriso faz lembrar o de Mona Lisa, no quadro pintado por Leonardo Da Vinci, muitas vezes enigmático, sem se saber se está a sorrir por simpatia ou por educação. Só furou as orelhas pouco tempo antes de ser ministra, por insistência do marido, já que não gostava de se ver de brincos – preferia anéis e pregadeiras. Os sapatos número 35, difíceis de encontrar, costuma comprá-los na sapataria Haity, no Porto. Nada em si parece fora do lugar. «Todas as pessoas têm de ter um bocadinho de vaidade, que significa alguma auto-estima e respeito pelos outros. O desmazelo é uma coisa muito desagradável», explica.
Uma excelente dona de casa
Uma máxima que também usa no cuidado que tem em casa – seja na Portela ou numa habitação com vista para o mar em Colares. Outra polémica em que se viu envolvida foi precisamente a da construção desta casa, alegadamente contra diretrizes municipais. Mas as polémicas não a abalam, apoiando-se na família. «É uma excelente dona de casa, uma excelente mãe e tem uma relação familiar ótima com o marido», resume Jorge Coelho, outra visita regular de casa. «Tem sorte, tem um marido extraordinário que a ajuda muito, que participa muito nas atividades da casa e que tem uma enorme paixão por ela. Tem uma família muito unida», refere.
Manuel Pina, o marido, acompanhou-a até ao púlpito no dia da cerimónia oficial de apresentação da sua candidatura, no Centro Cultural de Belém. «Tem sido o meu grande pilar», disse Maria de Belém à Caras. «A minha família é extraordinária, pois sempre conseguiu aguentar as minhas ausências, as minhas pressões e às vezes algumas tensões». Para ela, tomar o pequeno-almoço com o marido «é sagrado».
A filha vive atualmente em Londres e costumam falar regularmente pelo Skype. «Fiquei contente quando perguntei à minha filha – porque às vezes sou um bocado disciplinadora – se achava que era excessivamente exigente e ela respondeu que eu era uma mãe atenta».
O aniversário de Maria – ou Belénzinha, para os mais íntimos – é sempre um acontecimento. Costuma celebrá-lo em conjunto com o padre Vítor Melícias, que faz anos três dias antes dela, e um círculo de amigos chegados onde se incluem socialistas e personalidades ligadas à Saúde como António Guterres, Ferro Rodrigues, Manuel Alegre, Vera Jardim, Jorge Coelho, Edite Estrela, Luís Cid, Constantino Sakellarides, Cristiano Justo, Carlos Santos Ferreira e Francisco Mota Veiga. Os mais próximos dizem que é também uma «excelente cozinheira», e a sua especialidade são uns crepes salgados que Vítor Melícias e Jorge Coelho adoram. «Pergunto sempre: ‘Esqueceste-te dos crepes?’ Mas ela nunca se esquece», diz o último.
Prefere férias em Portugal
Gosta de receber os amigos na sua casa de Colares cheia de vasos de flores, em especial orquídeas, e decorada a preceito, com bons quadros e objetos de arte. «É uma pessoa de bom gosto. Tem cuidado com ela, e com a casa, mas sem ser ostensiva», diz Vera Jardim. É nessa casa que passa as férias de Verão. «Faz grandes sardinhadas e depois ficamos em longas conversas ao longo do dia», conta ainda. Não é uma «pessoa que viva a sonhar com viagens», como ela própria diz, já que viajou muito em trabalho. A que mais a marcou foi a Singapura, um país onde encontrou «organização e equilíbrio». Prefere ficar em Portugal: «Tenho muito pouco tempo para estar em casa, portanto sabe-me bem…».
Não é dada a revoluções nem a aventuras. Tem uma vida controlada, hábitos formais e comportamentos equilibrados, sem grande espaço para passatempos. Gosta de ler, mas confessa que ultimamente tem vários livros a meio. E aprecia séries policiais, principalmente inglesas, como Miss Marple ou Poirot. «Gosto daquelas séries que deixam algum lugar à adivinhação. Gosto de tentar adivinhar o assassino, mas às vezes é difícil porque estou a pensar noutras coisas», diz. Também gostou da série britânica Downton Abbey, que acompanha a vida de uma família aristocrática, conservadora nos costumes, e dos seus criados, no início do séc. XX. Nos tempos de juventude admirava os poetas de intervenção, como Manuel Alegre, que viria a tornar-se seu amigo, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira. E também Mário Soares e Álvaro Cunhal, exilados durante a ditadura, pela «coragem que tinham tido em pôr a vida e a liberdade em perigo para lutar pelos ideais da democracia». Gandhi e Nelson Mandela são outras duas figuras que admira, além do Papa Francisco.
O lançamento para Belém
O seu nome para a Presidência da República surgiu pela primeira vez em Janeiro do ano passado, durante uma Comissão Política, pela voz da eurodeputada Ana Gomes – que recentemente surgiu a apoiar Sampaio da Nóvoa. Mas Vera Jardim e Manuel Alegre já magicavam isso há mais tempo. «Eu e o Alegre falámos várias vezes, em almoços, que ela teria o perfil adequado. Desde há mais de um ano. Falámos com ela, possivelmente outras pessoas também terão falado, mas eu e o Alegre era os que tínhamos a ideia mais antiga», revela Vera Jardim.
No início de agosto, uma petição com 100 personalidades, incluindo nomes ligados à Saúde, mas também à Educação, como reitores de Universidades (uma área ligada a Nóvoa), lançavam a sua candidatura. E o anúncio, a 17 de agosto, foi feito ao mesmo tempo que António Costa dava uma entrevista à SIC – o que valeu a Belém críticas de deslealdade por parte de camaradas de partido. Mas os seus apoiantes rejeitam as acusações, dizendo nada foi feito ‘nas costas’ do secretário-geral. Facto é que o partido está dividido entre os que a apoiam e os que apoiam Nóvoa.
«Maria de Belém pode criar a ilusão de que é da direita do PS, mas isso é uma classificação muito redutora. Admito que tenha simpatia de pessoas de direita, mas o que tem isso? Alarga!», comenta Vera Jardim. Alegre alinha nos argumentos: «Está ancorada na esquerda e na esquerda do PS mas tem uma grande transversalidade. Não assusta o centro nem a direita, e não afasta a esquerda». E adianta: «Não será árbitro nem chefe de fação. E tem uma vantagem sobre Marcelo: é mais corajosa, firme e clara».
O poeta aproveita para deixar um recado ao PS: «É a candidata mais bem colocada para vencer Marcelo, e quem não vir isso comete um erro político. Espero que não se repitam os erros que permitiram a eleição de Cavaco Silva». E vai mais longe: «Não tive apoio na primeira candidatura e fiquei com um bom resultado. Na segunda tive um apoio mais de forma do que efetivo, o que me prejudicou, porque deixou de ser uma candidatura da cidadania e o apoio do PS não me trouxe vantagens».
Já Maria de Belém diz ter apoios no partido e faz fé no seu currículo – que tem invocado à exaustão durante os debates televisivos com os restantes candidatos presidenciais – para a levar à segunda volta, com Marcelo Rebelo de Sousa: «Há muita gente do PS que está comigo, o que é natural porque sou militante do PS e sempre fui do socialismo democrático. Não andei a saltar de partido em partido. E tenho a honra e o orgulho, sem falsa modéstia, de ter sido uma construtora do Estado Social no que tem que ver com a Segurança Social e a Saúde».
‘Nunca tive projetos de poder’
A Presidência da República era um sonho de há muito? «Nunca tive projetos de poder nem de ambição. Talvez erradamente», dizia em 2010. Hoje continua a afirmar que ser Presidente da República «não fazia parte de nenhum projeto de vida. As coisas aconteceram sem eu ter feito nenhum projeto de vida nesse sentido. Decidi candidatar-me porque muitas pessoas consideraram que era a pessoa mais indicada para o exercício dessas funções».
E, com toda a segurança que tem em si, afirmava em 2010: «Estou bem comigo mesma, gosto de mim como sou e não pretendo ser outra coisa diferente». E reafirma hoje: «É preciso ter no lugar de Presidente uma pessoa que simultaneamente seja experiente mas independente e autónoma, que tenha maturidade, seja sensata, saiba construir entendimentos entre posições divergentes e que seja capaz de servir o seu país acima de qualquer interesse, como sempre foi o meu caso».
Mas se Maria de Belém não vencer as eleições presidenciais marcadas para 24 de Janeiro, já há quem lhe vaticine outro destino: «Daria uma grande provedora da Santa Casa da Misericórdia ou uma grande presidente da Cruz Vermelha», remata o padre Vítor Melícias.