Composta por seis pinturas de grande formato, Quarto Escuro, de Adriana Molder, é o mais recente capítulo de uma história que se vem escrevendo há 25 anos. Desde 1990 passaram pela Sala do Veado, no Museu de História Natural, em Lisboa, cerca de 300 exposições, mas a de Adriana Molder representa o fim da linha.
«É uma sala muito difícil porque não precisa de nada», considera a artista. Molder – cujo pai, o fotógrafo Jorge Molder, também ali expôs – recorda-se bem da primeira vez que visitou o espaço. Corria o ano de 1993 e estava ocupado por uma instalação de Francisco Rocha. «A memória que tenho é de uns cães mecânicos de brincar, todos a mexer ao mesmo tempo. Lembro-me de ser uma coisa enorme e de me impressionar imenso».
Mais de duas décadas depois chegou a sua vez. «Não queria perder esta oportunidade porque é uma sala que adoro e ainda para mais trata-se da última exposição». A ideia de Quarto Escuro, explica a artista, «é estarmos num sítio pouco iluminado e irmos descobrindo aqueles rostos e aquelas personagens». O título remete para o jogo infantil, mas também para a aproximação à obra de arte. «Quando vou ao encontro de um objeto artístico, gosto de tentar reconhecê-lo um pouco no escuro, sem ter grande informação». Acerca da criação das suas pinturas, Molder revela que começa com um modelo tirado de um filme ou de uma fotografia, o qual «é completamente alterado pela minha mão, mas também pelas minhas memórias e outras imagens que vão aparecendo».
Laboratório de emoções
«Começámos com uma mulher e terminamos com uma mulher», congratula-se Sofia Marçal, responsável pela Sala do Veado desde 2008. A museóloga recorda que tudo começou com o incêndio de 1978, que destruiu as coleções de História Natural e deixou as salas inutilizadas. «Em 1990, a Fernanda Fragateiro veio ter com o Professor Galopim de Carvalho, que era o diretor, e propôs-lhe fazer uma exposição nestes espaços. Correu lindamente e a partir desse momento vieram outros artistas».
A Sala do Veado tornou-se desde então um verdadeiro laboratório. E as exposições de arte alteraram a noção de que faltavam condições dignas de um museu. «Quando os investigadores viram que se podia fazer exposições de arte com estas paredes cruas de cimento, perceberam que também podiam fazer exposições de ciência».
Antes do incêndio, a sala do Veado fazia parte da ala de Geologia e Paleontologia do museu. «Estava cheia de vitrinas e havia esse veado imponente, de uma espécie extinta há 12 mil anos. O veado não ardeu, só ardeu a cabeça. Ainda pode ser visto no átrio», nota Sofia Marçal.
A memória nos buracos
Além do veado, subsistem outros vestígios do fogo de 1978, como uma porta que se mantém negra do fogo. Mas sobretudo moram nas paredes da sala que agora vai fechar as memórias das exposições de arte contemporânea que ali tiveram lugar. «As montagens são feitas pelos próprios artistas com esforço físico. Não é com um preguinho, não é com cola, é mesmo com Black&Decker», explica Sofia Marçal. Como as marcas de canteiro numa catedral, os buracos fazem parte da história.
A museóloga, que está a fazer um doutoramento sobre a Sala do Veado, chama também a atenção para os laços de afeto que se geram entre os criadores e a sala. «Fiquei aqui muitas vezes com eles até às duas, três da manhã. Normalmente vinham com os familiares fazer as montagens – o pai, o irmão, a mulher ou o marido, o filho ou a tia».
José Pedro Sousa Dias, o diretor do museu, justifica a decisão do encerramento. «A sala já cumpriu a sua missão nestes 25 anos. Pretendemos continuar com exposições de arte contemporânea mas não neste modelo». Até porque «a área expositiva já começa a ser um bem escasso».
Quando reabrir, o espaço será ocupado por uma exposição «sobre a relação entre a botânica e as populações, usando as coleções aqui do museu de botânica e do instituto de investigação científica tropical». Embora mude de função, a sala manterá as suas características. «Aquela ala do museu tem uma imagem de marca deixada pelo incêndio. Não fazemos tenções de alterar muito essa imagem», diz o diretor. E garante que o futuro não passa «por meter estuque nas paredes».
«Esta rudeza da sala fascinava os artistas», revela Sofia Marçal. «Há qualquer coisa de magia nesta sala e eles estão todos com muita pena». Adriana Molder confirma o sentimento. «É um espaço muito independente, muito central, numa das nossas ruas mais bonitas. Acho que vai fazer muita falta».