Nesta era de peste adolescente, a garotada rapidamente aprende a berrar que não pediu para nascer.
E berram assim por coisas de nada; eu, a estes desditosos – às vezes já de barba rija ou saltos altos – faço-lhes a esmola de um exemplar do Oliver Twist de Charles Dickens; caso teimem no berreiro, cito Álvaro de Campos: «Se te queres matar, por que não te queres matar?»
Esquecem estas almas esconsas que há mundo além das suas estreitas paredes – e não reparam que o prémio da vida traz como bónus a liberdade.
Não podemos escolher os pais, mas podemos escolher quem somos.
A arte recorda-nos que a História humana é um trajeto de singularidade.
Através de livros, pinturas, esculturas, filmes, sinfonias ou canções descobrimos a que família pertencemos, escolhemos irmãos e amigos, conversamos intimamente para lá do tempo e do espaço. David Bowie sabia-o; por isso dedicou aqueles que tinha a certeza que seriam os seus últimos meses a trabalhar numa mensagem sobre o valor da vida, vencendo assim, uma vez mais, a morte.
Nunca fez outra coisa, de resto; agora, apenas nos mostrou a morte de perto, com o seu rosto descarnado – temporário e imortal.
A História é uma ilusão, uma alucinação coletiva feita do desencontro das visões individuais. Gostamos de pensar que a soma de todas as perspetivas nos forneceria um retrato real do mundo: mas a máquina trituradora da memória, em permanente atividade de transfiguração, devolve-nos um caudal de ficções.
Somos irremediavelmente opacos e precários; essa fraqueza é a maior das nossas forças.
A arraia-miúda defende-se dessa intuição de solidão procedendo por imitação e por instinto de sobrevivência, atos que não nos distinguem dos animais nem nos libertam do maior dos perigos – o medo.
Bowie não se tornou único para escapar às algemas do medo; o processo foi o inverso. O seu trabalho – na música como nos filmes que interpretou – consistiu em encarar esse privilégio, que só os humanos possuem (e tanto desbaratam) de encarar a morte de frente. Com fúria, alegria e paixão.
Os atilhos da razão, hoje endeusada, apenas servem para dar uma aparência de controlo e de partilha à experiência abissal da morte a que cada um de nós, à sua maneira, está condenado.
Nada podemos conhecer da morte – apenas podemos tentar transpô-la, cintilando sobre as vidas dos outros como estrelas, brancas ou negras. Nem a cor é partilhável; a inclinação da luz sobre o nosso olhar não se assemelha à da pessoa mais próxima ou mais amada.
No seu derradeiro vídeo, Bowie mostra-se de olhos vendados por uma gaze clínica, retinas furadas, regressadas ao pó das estrelas de onde vieram.
Há quinze anos, levei Bowie para dentro de um romance que escrevi, diálogo entre uma mulher morta e o seu sobrevivente amigo, diálogo de amor e surdez como são todos os diálogos terrenos – aquilo que um recorda distingue-se em cor e temperatura do que o outro lembra, nem as palavras coincidem, cada um as molda insensivelmente àquilo a que Vergílio Ferreira chamava o «equilíbrio interior» e é particular e intransmissível – porque nenhum de nós sabe, em verdade, quem é e por que busca o que busca ou ama quem ama.
A atitude estética e ética (perdoe-se a redundância, mas ainda há muito quem não entenda que as duas coisas são uma só) de David Bowie aproxima-se muito, na minha visão, da de Caetano Veloso – outro criador de música, imagens e palavras carimbado com o contemporâneo selo beatífico da ‘novidade’.
O que os move é uma curiosidade profunda, arriscada, velha como a humanidade; são novos como em geral só os velhos sabem ser, isto é: mantendo-se indiferentes às expectativas do mundo, procurando livremente as suas famílias e escavando as suas formas de expressão.
Nasceram velhos e souberam manter-se assim, com o fulgor dos que nada têm a perder. Só esses ganham.