Passou muitos anos dentro de água, como atleta de alta competição e, por isso, a sua relação com a falta de roupa é boa. Conta que ainda não se sente preparada para experimentar teatro e relembra como o fisco lhe penhorou a conta bancária por causa de uma dívida que já estava saldada.
“Eu conheço-a”, diz, mal chega. É verdade, a memória não traiu Virgílio Castelo, apesar dos quase dez anos que distam da anterior entrevista. Uma década que, sem dúvida, trouxe serenidade ao ator e agora consultor para a ficção, na RTP. Continua, aos 62 anos, a ser um contador de histórias nato. Mas mais do que aventuras de vida, agora conta histórias sobre a sua forma de estar. Daquelas que revelam fragilidades que apenas servem para nos provar que não há nada mais forte do que ser frágil. Uma entrevista que cheira a conversa no divã, um pouco como faz todas as noites, no papel de Mário Magalhães, na série da RTP, “Terapia”.
É verdade que o papel do protagonista da série “Terapia” já lhe tinha sido oferecido três vezes?
Sim, tinha mesmo que ser. Havia um encontro marcado que teria de se concretizar. Conheci a versão israelita da série em 2008, quando o Nuno Santos, diretor de programas da SIC, pôs a hipótese de fazer uma adaptação, comigo no papel do terapeuta. Não se fez, principalmente porque as televisões privadas não têm orçamento para fazer séries. A novela é um produto que exige um investimento inicial muito grande mas depois é o produto mais rentável que existe em termos de ficção. Há dois anos, apareceu-me um realizador que me queria convidar para o papel porque ia propor a série às várias televisões, mas também não se concretizou. A terceira e última vez que me deparei com esta série foi agora, quando a SP apresentou vários projetos à direção de programas da RTP, entre os quais, este. A direção de programas achou que este encaixava na programação e convidou-me para fazer o papel. Andava nisto há oito anos.
Há papéis que estão marcados na vida de um ator?
Não sei. Mas há uma frase do Saramago que acho muito bonita: “Chegamos sempre ao lugar onde somos esperados”. Na vida acabamos por fazer aquilo que temos de fazer. Há várias pessoas que me têm abordado e me falam de coisas que têm a ver com o meu trabalho de ator neste papel mas também com aquilo que inevitavelmente sou como pessoa e que acaba sempre por transparecer. Aconteceu-me várias vezes, nas gravações, ficar extasiado a ver os meus colegas representarem. Isso é uma reação mais do homem do que do ator. Não digo que mais cedo ou mais tarde teria de fazer esta personagem, mas que esta personagem tem muitas características que são parecidas comigo como pessoa, diria que sim.
É um papel que, pela carga que tem, inerente à profissão que representa, faz mais sentido numa fase da vida que se presta mais à análise e à tranquilidade?
Sim. Embora nos atores isso não seja um dado adquirido. Por vezes nunca atingimos essa tranquilidade. Mas sim, a idade permite isso. Um terapeuta tem de ter uma capacidade grande de ouvir, mas sobretudo de se interessar por aquilo que estão a dizer. E acho que, com a idade, nos tornamos mais capazes de o fazer. Talvez por isso é que esta personagem nunca é feita por um homem com menos de 50 anos. Tem de ser alguém com passado. E com essa capacidade de se interessar por aquilo que os outros estão a dizer.
Noutras fases da vida somos mais egoístas?
Pode ser por aí. Há uma frase que li quando tinha 40 e tal anos, de um cantor americano, o Kris Kristofferson, que dizia algo que me fez muito sentido: “o homem só começa a crescer quando começa a encarar o que vai ser a sua própria morte”. Aos 20, 30, 40 anos, achamo-nos imortais. Quando percebemos de um modo mais visceral que vamos morrer, tudo se altera. No meu caso essa consciência da morte aconteceu aos 40 e tal, na chamada crise da meia-idade. Fui adolescente até aos 45 anos.
Quando se começa a perder amigos, essa consciência torna-se ainda mais avassaladora?
Muito. Ainda hoje de manhã fui à missa do Fernando Ávila. Era mais novo que eu, conhecíamo-nos há 30 ou 40 anos. Nestas alturas começa-se a perceber que as peças que nos acompanharam neste jogo vão tomando outra configuração. E, apesar da amizade, fica a sensação de que não há nada de realmente importante que não façamos sozinhos. O que fazemos de mais importante é nascer e morrer, e aí estamos sozinhos.
Mas pelo meio tornamo-nos sanguessugas de afetos.
Exato. Há uma rede que se vai criando, porque fazer isto tudo sozinho é uma trabalheira enorme e não tem metade da graça. Mas quando olhamos para trás e pensamos na nossa vida, apercebemo-nos que é sempre na dor que crescemos. E nesses momentos, mais uma vez, estamos sozinhos. Tudo o que é estrutural na vida é feito sozinho, mas de facto aquilo que a física quântica está a provar agora é que podemos estar sozinhos mas fazemos parte do mesmo processo e não há energia que um de nós desencadeie que não tenha uma resposta do outro lado. E por isso essa rede de afetos que vamos construindo ao longo da vida é natural. Como diz a canção brasileira, “ninguém é feliz sozinho”.
Este homem que fala de energias e de paz interior é uma espécie de Virgílio Castelo versão 2.0?
É uma versão revista e atualizada da tal crise de meia-idade que tive aos 42/ 43 anos. A conclusão racional a que cheguei nessa altura é que o que tinha feito até aí teve um determinado sentido, mas que, daí para a frente, nada faria sentido se continuasse a ser o tal eterno adolescente. A descoberta que fiz nessa altura foi que queria estar cada vez menos centrado no meu ego. Mas isto é dificílimo, sobretudo para um ator, que vive centrado naquilo que os outros acham de si. Não foi um processo fácil, mas foi a partir dessa crise que comecei a focar-me noutras coisas que não apenas o trabalho de ator. Foi a partir daí que comecei a dirigir atores, que dirigi a NBP, depois a SIC e agora a RTP. Teve a ver com o querer fazer coisas não centradas em mim.
Como se o papel de ator estivesse a tornar-se tóxico para si?
Também não. Ser ator é um brinquedo maravilhoso. Permitiu-me e continua a permitir-me uma coisa fantástica: estar sempre a recomeçar. E isso é ser criança outra vez. Há um prazer físico na representação, não é apenas intelectual. Sobretudo no teatro: estar no palco é como estar a jantar com aquelas pessoas. As outras coisas que faço têm a ver com uma necessidade de servir que encontrei a partir dessa crise de meia-idade. Há uma parte da nossa vida que deve ser radicalmente individualista, só nós é que podemos fazer por nós, e no caso dos atores isto é completamente verdade: o que define um ator é o que ele tem de específico.
Acha que a tal crise de meia-idade fez de si um melhor ator?
É possível. A partir do momento em que se tenta fazer o trabalho de descentrar de nós próprios, ficamos mais recetivos a tudo. Se, na vida pessoal, me exponho mais ao mundo, isso traz-me outras influências para usar como ator. Mas não sei se fiquei melhor.
Mas, pelo menos, libertou-se de estigmas que lhe foram associados.
Ouvi vários tipos de estigmas em relação a mim.
Qual o irritava mais?
O terem-me associado a uma imagem de sex symbol, que, no caso português, é terrível porque está associado à falta de talento. Em Portugal ser um sex symbol é ser uma espécie de loura burra. Isso irrita-me. E nunca me considerei um sex symbol. Mas como ator houve coisas que me magoaram mais.
Como por exemplo?
Em 41 anos de carreira, o que mais me tem magoado é a relação com uma certa imprensa. Não tenho razões de queixa de escreverem objetivamente mal de mim. Nunca houve nada particularmente acintoso. Mas também nunca houve nada particularmente apologético. Fiz este e aquele papel, recebi prémios e… nada. Sempre pensei “porquê?” Mas à medida que vou ficando mais velho parece que há algumas pessoas que já não se importam de escrever de forma simpática sobre mim. Acho que tem a ver com o facto de ter mudado de paradigma, passei a ser o avô, e com isso passei a sentir uma simpatia que não sentia antes.
Essa mágoa alguma vez o levou ao divã do terapeuta?
Isto não. Mas passei pelo terapeuta com a tal crise de meia-idade. Fui tentar perceber o que me estava a acontecer. Aos 20, 30, 40 anos sentia uma sensação de força e de potência no sentido de dominar a vida, sentia que levava tudo à frente e que tinha força para aguentar com tudo. Com a meia-idade comecei a perceber que afinal não tinha capacidade de aguentar com tudo. Aquela ideia de que um homem não chora, um homem aguenta, começou a abanar como um bambu. Aconteceram-me desgostos de amor, coisas de incompreensão com a família…
Deu por si a chorar?
Com certeza. E a sentir que tinha mesmo de perceber o que me estava a acontecer. Nessa altura fiz psicanálise. Não chegou a um ano. E também procurei ajuda na leitura e no cinema. Li tudo e mais alguma coisa que me pudesse ajudar a perceber a minha própria fragilidade. “O Homem Sem Qualidades”, do Robert Musil, foi determinante para perceber que não sou obrigado a ser forte o tempo todo. Aos 40 anos, na crise da meia-idade, percebi que tinha direito a ser fraco.
Acha que o facto de ter vindo de uma família pobre, de ter passado os primeiros anos a trabalhar em áreas que nada tinham a ver com a arte da representação, o imbuiu desse sentimento de que não tinha direito a falhar?
Não tive uma vida fácil mas também não foi difícil. Ou melhor, tenho uma enorme capacidade de esquecer as coisas que me doeram, que me magoaram. Acho que os lutos devem ser feitos imediatamente. Se é para levar com um prédio em cima, levo. E depois volto à minha vida. A minha vida teve muitas dificuldades, mas também muita sorte. Fui obrigado, pela família em que nasci, a mexer-me senão não sobrevivia. E foi isso que fez com que as oportunidades surgissem na minha vida. Mas também não consigo estar parado muito tempo. Deve ter algo de genético.
Como assim?
A minha mãe só muito recentemente, e porque ficou doente, está mais parada. Ela tem 83 anos e até há dez não parava.
O seu pai também é assim?
Não. Acho que sou uma mistura feliz dos dois. A minha mãe é a inquietude em pessoa, o meu pai é o contrário. A minha mãe teve uns 40 empregos, o meu pai teve dois. O que tenho do meu pai é essa ideia de compromisso. Posso mudar muito, como a minha mãe. Mas enquanto estou, estou mesmo, como o meu pai.
Começou a trabalhar aos 14 anos, mas na altura nem pensava em ser ator?
Se não tivesse havido 25 de abril, tinha eu 21 anos, acho que nunca teria sido ator. O que acontece com o 25 de abril foi que trouxe uma sensação de que tudo era possível. Na sociedade que existia antes do 25 de abril era impensável vir a ser ator. Para mim os atores estavam num Olimpo inatingível para um miúdo pobre como eu. Fui parar ao teatro por acaso.
Acha que pode ter sido esse percurso acidental que lhe retirou credibilidade aos olhos das mentes pensantes da área?
Não. Fui estudar para uma das mais prestigiadas escolas da Europa e mesmo assim isso não resolvi o problema. Acho que tem a ver com uma coisa que hoje em dia é comum: a ideia de que o público vem antes de tudo. Mas ninguém na minha geração pensava assim, pensava antes que o público tinha de ser educado. Nunca achei isso. Sempre achei que era possível fazer espetáculos de qualidade para as massas. Estreei-me no teatro de revista e durante um ano tinha 1500 pessoas por sessão a ver-me. Quando saí fui para os grupos de teatro independente, mas nunca perdi a noção de que é o publico que está em primeiro lugar. Não são os políticos, nem os jornais, nem os críticos.
Lembra-se do momento, aos 14 anos, em que soube que tinha de ir trabalhar?
Foi o meu pai que me disse. Tinha tido más notas no primeiro período e o meu pai disse-me que, se não estava a cumprir, tinha de ir trabalhar. Foi uma opção mimética, o meu pai também começou a trabalhar aos 14 anos. Fui trabalhar como paquete, passava o dia a fazer recados e a levar embrulhos de elétrico. À noite estudava. No final do mês dava o dinheiro todo ao meu pai. O meu primeiro salário foram 450 escudos.
O que o levou para Paris aos 17 anos?
Fui para passar uma semana e fiquei. Foi o irmão mais velho da minha mãe que me arranjou emprego nas obras do aeroporto de Orly. Ao fim de três dias fui despedido e o responsável ainda me disse que eu era o único português que tinha conhecido que não tinha jeito para trabalhar nas obras. O mesmo tipo pôs-me na gare sul a levar as pessoas que precisavam de ir de cadeiras de rodas para o avião. Além disso também fui porteiro num hotel, criado de mesa, carpinteiro… A primeira coisa que fiz quando cheguei a Paris foi estar uma tarde inteira sentada no Champs Elysées a ver as pessoas passar. Toda a gente tinha cor nas roupas, enquanto Portugal era um país cinzento. Estive nove meses, voltei em junho de 1971.
O que veio fazer?
Fui para o Instituto de Estudos de Mercado, da Unilever. Andava de casa em casa a perguntar quais os produtos da fábrica que as pessoas usavam. Fiz isso dois anos, até aos 19, quando fui para o ministério das Finanças, onde estive até ao 25 de abril.
Ao mesmo tempo ia trabalhando como modelo?
Sim, para ter mais dinheiro.
Ainda entregava o dinheiro ao seu pai?
Não todo. Mas ainda vivia com eles. Depois, com o 25 de abril, os meus pais emigraram para Paris, e portanto eles é que saíram de casa. Tive uma vida dura, mas muito solta: com 20 anos tinha uma casa. E quando acabou o regime, como tive a sorte de trabalhar logo no primeiro espetáculo feito em liberdade, ganhava uma fortuna. 9 contos. Ganhava mais que o meu pai.
E ainda havia a questão do prestígio de ser ator…
Na altura, mais do que isso, o teatro era uma coisa muito politizada, havia o espírito de missão. Ainda por cima estreei-me numa companhia [Adoque] alinhada com o Partido Comunista, que foi um desgosto para o meu pai, que era um homem do regime, que trabalhava na Mocidade Portuguesa. Mas rapidamente resolvemos essa questão entre nós.
Sentia-se na terra de ninguém? Por um lado era o rapaz que foi criado numa casa do regime, por outro era o rapaz que achava o regime cinzento, que já tinha visto que fora de Portugal havia cor, e que foi trabalhar com uma companhia comunista…
Essa análise é curiosa, porque a ideia da terra de ninguém ainda hoje faz sentido para mim. Lembro-me de conversas com o António [Feio] em que ele me dizia que chegava ao teatro comercial e diziam-lhe que era do independente, chegava ao independente e diziam-lhe que era do comercial. A ideia de não pertencer a lado nenhum esteve sempre presente em mim. Sempre me senti fora da catalogação.
Mas como surgiu a oportunidade de ir para o teatro?
Conheci a Helena Isabel na moda e fui para o teatro por causa dela. Entrei no Adoque como secretário, mas ao fim de 15 dias o Francisco Nicholson e o Mário Alberto viraram-se para mim e disseram “tu vais ser ator”. As coisas têm-me acontecido assim ao longo da vida, como se os outros vissem sempre antes de eu próprio ver. Aceitei porque estava a três meses de ir para a tropa e pensei que era mais giro passar esses meses como ator do que como secretário. Até porque não tenho medo de experimentar. Só que aconteceu-me o que acontece a todas as pessoas que entram para este meio: nunca mais quis sair. Três meses depois fui para a tropa, durante nove meses, mas mantive sempre o contacto e, quando fui colocado num quartel do Porto, como a companhia ia para lá, pediram-me para organizar várias coisas. Assim que acabou a tropa voltei à companhia e nunca mais parei. Mas lembro-me que antes disso, no meu primeiro espetáculo, só entrava em cenas de grupo, mas no primeiro dia, mas por necessidade, um dia, puseram-me sozinho em palco, com um texto. Esse número foi cortado no dia a seguir.
O que o fez ir estudar apesar de já estar a trabalhar regularmente?
Estive três anos a fazer revista e peça infantis. E, nesse período, tive a sorte de ser adotado pelo Francisco Nicholson, com quem eu partilhava camarim. Quando saí, porque sentia que aquilo já não me satisfazia, fui para Os Cómicos, um grupo de teatro dirigido pelo Fernando Heitor, ganhar metade, e nessa altura comecei a dar-me com o Luís Miguel Cintra e com o Jorge Silva Melo, que entretanto me convidaram para entrar no “Woyzeck“. Passei do teatro de revista para a catedral do teatro independente. Acabei por ir estudar para Estrasburgo, para a escola mais elitista da Europa, mandado por eles. E só voltei para Portugal porque me apaixonei pela mãe da minha primeira filha.
A televisão foi outro dos acasos da sua vida?
Sim. Chego à televisão em 1984. Tinha acabado de comprar a minha primeira casa e entrado para o teatro nacional D. Maria II, com a peça “A Sobrinha do Marquês”. Mas a primeira carta que recebi na casa nova foi uma carta do teatro a despedir-me. Comecei à procura de trabalho e disseram-me que ia começar uma novela chamada “Origens”. Ofereci-me, mas o Nicolau [Breyner] disse-me que eu já estava muito velho para o papel. Só que as características do papel mudaram e passei a ter lugar no núcleo onde o António Feio era protagonista. Ele era um jovem drogado e eu tocava bateria no bar onde ele estava sempre. A novela era uma espécie de “Tragédia da Rua das Flores” ao contrário, ou seja, era a filha (Helena Isabel) que se apaixonava pelo pai (Nicolau Breyner) sem saber. Nesta altura começaram a surgir cartas de protesto e teve de se arranjar um romance diferente para a Helena Isabel. Um dia, o Thilo Krassman, que era o produtor, olha para mim, estava eu a beber café na NBP, e diz que ia ser eu o namorado da Helena Isabel. Como já estava na novela acharam que era a solução ideal. Comecei a novela quase como figurante e acabei como protagonista.
O que o conquistou na televisão?
Não foi o dinheiro, porque nessa altura não se ganhava praticamente nada. E apesar de ter sido contratado à sessão até acabei a ganhar imenso dinheiro porque acabei a fazer imensas sessões, mas como a empresa foi à falência levei dois anos para me pagarem. O que percebi na altura, e estamos a falar dos anos 80, tinha eu nove anos de profissional, é que talvez tenha sido a primeira vez que senti o que era uma relação normal de ator com o público. Porque eu tinha começado num momento em que havia um teatro popular muito forte. Depois, com o PREC e com os anos sem dinheiro, as coisas foram mudando, o teatro comercial foi desaparecendo, e ficaram as companhias independentes. A novela foi o ressurgimento de uma relação que chamo normal do ator com o público. Até aí os atores eram bons se os professores universitários assim o achassem. O grande público era uma coisa que não existia no teatro mas que passou a haver na televisão. Para mim, como o público é o que mais conta, tornou-se claro que a televisão era um terreno onde me sentia confortável.
Ao mesmo tempo sentiu que, para os tais profissionais do teatro que trabalhavam para os professores universitários, passou a ser uma espécie de inimigo público número 1, um pouco como aconteceu a todos os que passaram do teatro para a televisão?
Nas primeiras novelas essa dicotomia não se sentiu tanto. Acho que apenas a partir de 89/90 se começou a sentir mais, quando começou a existir mais trabalho. E sentiu-se sobretudo quando a TVI começou a fazer ficção, em 98/99. Foi ai que começou a indústria que temos hoje e se estabeleceu a divisão entre os atores de prestígio que não faziam televisão e os outros. Tudo porque se achava que a televisão era um produto menor. Hoje em dia praticamente não há ninguém que não tenha feito novelas.
Como ator já passou por muitos palcos e por todos os canais, como programador também, o que o põe num patamar único. O que acha que lhe permite essa pluralidade?
Não sei. A primeira pessoa que pensou em mim para estas coisas foi o Nicolau [Breyner] que um dia se virou para mim, estava eu à porta do meu camarim, na NBP, e disse: “tu vais-me substituir. Vais ser o próximo diretor geral”. Porquê não sei dizer, mas não diria que não ao Nicolau, até pelo meu lado de aventura. Tive muita sorte porque coincidiu com o momento em que a TVI começou a fazer novelas e conseguimos ultrapassar as da Globo. E trabalhávamos com o José Eduardo Moniz, com uma enorme liberdade e criatividade. Quando foi a ida para a SIC, fui convidado pelo Ricardo Costa e pelo Nuno Santos, e na altura a SIC não tinha investido nas novelas portuguesa porque era mais barato ter as brasileiras. Mas na TVI tínhamos batido as brasileiras e portanto a SIC sentiu que deveria fazer essa aposta e foram buscar-me, por ser a pessoa que já tinha estado a fazer esse trabalho. Fui para a SIC fazer da ficção uma ficção que se batesse com a da TVI. O último projeto que fiz, “Laços de Sangue”, foi o primeiro que conseguiu bater a TVI. Agora lidam de igual para igual.
E a RTP, onde agora é consultor para a área da ficção?
O paradigma é muito diferente, é muito mais difícil e ambicioso. O público está pulverizado e, enquanto na SIC ou na TVI há um produto, a novela, e portanto há que estudar esse produto e o que corre bem e mal com ele, já a RTP tem vários tipos de público, várias sensibilidades e zonas do pensamento que é preciso contemplar, porque é serviço público.
Teve receio ao aceitar o convite da RTP porque qualquer cargo na estação pública é escrutinado como não é nenhum cargo em nenhuma outra empresa nacional?
Ponderei isso, mas achei que não tinha o direito de dizer que não, nem a quem me convidou, nem a mim próprio. A tarefa é muito complicada, o gossip é enorme, mas isso tem sido a minha vida. Não tenho como escapar a isso. Nem quero. E tenho vontade de olhar para este trabalho na RTP como não olhei para os outros. Os outros interessaram-me muito, mas a responsabilidade era diferente. Aqui o patrão é o país inteiro.
O que imagina para a estratégia da RTP?
Tive a sorte de entrar para a RTP numa altura em que o governo deixou de mandar nela. Há o Conselho Geral Independente e não há ministros a dizer que não gostam de um programa e portanto ele acaba. Mas não sou eu que digo qual a estratégia, isso é a direção de programas, o que eu faço é concretizar essa estratégia. E o que a direção diz, e está no contrato de serviço público, é que a ficção da RTP deve ser alternativa e complementar. Não vamos fazer a mesma coisa que se está a fazer nas privadas, portanto não vamos fazer novelas. Mas queremos fazer coisas que o público veja, por isso a nossa aposta são as séries. Só que como não há dinheiro temos de puxar muito pela cabeça. E temos de apostar na diversidade de elencos, de autores, de estéticas… Começámos com a “Terapia” que é completamente diferente do que há nos outros canais e que tem tido um eco fantástico. E as três séries que vêm a seguir são todas diferentes. Há uma maneira nova de olhar para a ficção. O que se mantém é que o meu objetivo é o público, não são as elites. Se assim continuarmos vamos conseguir ter séries com qualidade e das quais o público vai gostar.
E que podem bater as novelas?
Nunca pensei, quando estava na NBP/TVI, bater a Globo. O meu objetivo era que os portugueses vissem. A RTP não precisa de bater as novelas para que o público veja as suas séries. Basta-nos que haja gente a querer ver as nossas séries. Quanto mais gente, melhor, claro.
Na agenda do homem que representa, do homem que pensa e executa televisão, e que ainda assim quer manter alguma tranquilidade na vida, ainda há tempo para o homem que escreve?
Neste momento, não. Escrevi os dois romances numa altura em que tinha mais tempo. Agora estou permanentemente a pensar na RTP. Mas gostaria muito de escrever um terceiro romance. Até já tenho a ideia, surgiu-me em Estrasburgo, em 1978, só que nunca soube como o fazer. É uma coisa sobre Deus e sobre a morte. Andei 30 anos a tentar encontrar a maneira de o fazer e encontrei há cerca de um ano e meio, numa conferência sobre Lisboa, um assunto completamente diferente. No meio daquilo fez-se luz. Já sei como vou escrever mas ainda não comecei.
É uma temática, que apesar de lhe ter surgido há muitos anos, só agora, nesta sua versão 2.0, faz sentido concretizar?
Sem ter tido a crise da meia-idade, e sem ter lido tudo o que li entretanto, provavelmente nunca me poderia aventurar a escrever algo deste género, sobre Deus e a morte. Mas também, se não ficar agradado com o resultado, faço como tenho feito com a poesia, que é o que escrevo mais: deixo na gaveta.
O exercício da escrita é terapêutico para si?
Não sei. Mas tenho tentado refletir porque é que escrevo desde os 19 anos poesia e porque é que a poesia me sai sempre como se eu fosse um poeta do século XVI ou XVII. Sai-me sempre em sonetos, oitavas, redondilhas…
E para ser avô, tem tempo?
O ser avô está diluído pelo facto de ter filhas muito pequeninas. O que eu tenho é um bando de miúdas lá em casa ao fim de semana. Umas chamam-me pai, outras avô. Mas sou mais pai-avô, reajo com as minhas netas mais como pai do que como avô, com aquela coisa de desculpar.
Numa entrevista anterior disse que continuava a ser um romântico e continuava a acreditar nos lirismos da vida. É assim mesmo aos 62 anos?
Sim. Quando digo que acredito no amor, é melhor acrescentar que acredito no amor como acredito na física quântica. A sério. Acho que o amor não é apenas um sentimento, acho que é uma energia e uma força da natureza tão palpável como a força da gravidade ou a velocidade da luz. Acho que o amor é mensurável. Acredito que grande parte das teorias espirituais que existem têm por base o amor, mas fica sempre uma coisa muito vaga. Do meu ponto de vista, a física quântica está a provar que o amor existe como uma realidade física e energética: ninguém gosta de mim se eu não gostar. O amor exige essa troca de energias harmónica. E acho que essa troca de energias é quantificável. Se não tiver disponibilidade amorosa no sentido mais lato, é a mesma coisa que não ter disponibilidade para atravessar uma rua porque está cheia de gente e posso tropeçar em alguém.
E é possível ter essa disponibilidade até ao fim da vida?
No meu caso acho que sim. Até porque esta ideia do amor como dimensão física é um algo que descobri há meia dúzia de anos, mas que é cada vez mais forte em mim: a ideia de que tudo o que é comportamento anti-amoroso tem um preço.