Críticos ou colegas que desprezavam um escritor e se tornam os seus mais acrisolados defensores assim que ele recebe um grande prémio internacional; lembro-me muito bem de os ver mudar de campo com a rapidez de um fósforo e o estrépito de um fogo-de-artifício no dia em que Saramago recebeu o Prémio Nobel.
Artistas saltitando de mecenas em mecenas, pensando que assim atingirão, em uníssono, conforto, genialidade e aplauso. Às vezes conseguem pelo menos dois destes objetivos – o génio ainda não é apenas uma questão de ambição, ao contrário do que rezam as crónicas contemporâneas -, dando às gerações futuras a ideia de que o mundo é dos espertalhaços e o sucesso uma questão de ‘contactos’ oportunistas.
A competição está a substituir todos os valores; é isso que cria o nihilismo de que tantos se queixam e que tão poucos combatem, na sua ação quotidiana.
Em vez da rija verdade, a mole mentira; em vez do apreço pelo trabalho e pela persistência, a admiração pela aldrabice bem embrulhada e pela novidade; em vez da coragem frontal, a cobardia da insinuação; em vez da solidariedade, a ganância; em vez da lealdade, a traição que já nem a si mesma se reconhece; são essas as causas profundas e enraizadas da crise contemporânea: o abandono de todos os princípios definidores da diferença humana em prol do princípio animal da competição pela sobrevivência.
Esquecem os que assim agem – cada vez mais sem sequer pensarem um segundo que seja – que ninguém é vitorioso neste mundo; todos acabaremos estendidos num caixão, reduzidos a pó.
Esquecem também que a História, apesar dos seus múltiplos equívocos de construção ficcional, não regista celebridades de estação, mas descobridores de longo curso; em vida, Fernando Pessoa não foi um sucesso: pouquíssimos perceberam a sua grandeza. Muitos dos que hoje vivem dele não lhe dariam a esmola de dois dedos de conversa, se o encontrassem, tímido, insignificante e absorto, num canto de café, escrevinhando. «Nunca conheci quem tivesse levado porrada/todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo», escreveu ele, no início de um dos mais lúcidos e belos poemas da língua portuguesa.
Quem é capaz de debitar, sem ir ao Google, todos os Presidentes da República portuguesa? Quantos Nóbeis da Literatura continuam a ser efetivamente lidos? A fugacidade do sucesso torna as pessoas ainda mais sôfregas dele: já que ninguém vai ficar na História, todos se assanham pelos seus cinco minutos ou vinte anos de fama. Nem percebem que cinco minutos de felicidade ou de amor consolam infinitamente mais.
O desprezo pelos políticos, disfarçado de luta pela transparência e pela igualdade e não sei que mais (as palavras andam todas na prostituição, que não é uma atividade lúdica e satisfatória, ao contrário do que querem alguns sociólogos de algibeira), radica neste profundo asco ao labor continuado pelo bem comum.
Todos somos políticos, é certo – sobretudo quando não somos: quando nos abstemos de votar ou de perder um minuto a fazer alguma coisa por outrem. Todos os dias, elementos da ‘sociedade civil’ berram pelo seu direito ao poder, sem terem feito nadinha por isso – e defendendo essa virgindade de ação como uma qualidade extraordinária.
Eu presto vénia a quem queimou tempo, neurónios e pestanas a pensar e votar as leis da democracia – mesmo aquelas de que discordo; homenagearei sempre os que sofreram prisões, censuras, vetos e humilhações em nome da liberdade – mesmo que os seus ideais não sejam os meus. Não, não somos todos iguais: uns trabalharam pelo Estado de todos enquanto outros tratavam das suas vidinhas; e esta diferença merece respeito.
No rescaldo das eleições, a voracidade com que tantos se atiram aos ossos dos perdedores, espezinhando-os e procurando enterrá-los para todo o sempre, revela que a civilização é ainda um pobre verniz.
Bater em quem vai à luta e perde parece ser um exorcismo que as pessoas usam como compensação do que não arriscam nem fazem. Fujo destes ‘vencedores’ como da peste, porque eles são a verdadeira peste.