Os mais condescendentes chamaram-lhe «ousado» ou «optimista», os mais impiedosos classificaram-no como «irrealista» ou «fantasioso».
Ninguém verdadeiramente acreditou no documento.
Nem o próprio Mário Centeno.
António Costa deve ter-lhe dito: «Acomode aí as medidas que acordámos com o PCP e com o BE, e ponha um défice final de 2.6%. O resto das contas é consigo».
Centeno fez então um exercício escolar, como faria nas aulas que dá: cozinhou uns números de modo a que, no fim, as contas batessem matematicamente certas.
Claro que nenhuma entidade experiente foi na conversa.
A esquerda diz que a culpa é do ‘pensamento único’ que vigora em Bruxelas.
Mas isso não é verdade.
O Conselho das Finanças Públicas, um organismo nacional, apensou ao esboço de Orçamento um parecer crítico.
A UTAO (Unidade Técnica de Apoio ao Orçamento), outro organismo nacional, pôs muitas reservas ao documento.
A troika, que integra o FMI, idem.
As agências de rating (Fitch, Moody’s e mesmo DBRS), de nacionalidades americana e canadiana, torceram o nariz.
O Commerzbank (alemão) já tinha dito que Portugal será «a nova criança problemática» da Zona Euro, acrescentando que «os dois maiores sucessos do Governo anterior – a estabilização do défice e a melhoria da competitividade da economia portuguesa – estão em risco».
Perante as críticas generalizadas – e as posteriores exigências da Comissão Europeia –, Centeno foi cedendo, cedendo, o que se traduziu numa significativa subida de impostos.
Ora, esta solução vai exatamente no sentido contrário àquele de que o país precisava: em vez de reduzir a despesa para aligeirar a carga fiscal, aumenta a carga fiscal para compensar o aumento da despesa (reposição de salários e pensões, devolução da sobretaxa, reintegração de funcionários, a que poderão somar-se novos encargos decorrentes das reprivatizações da TAP e dos transportes urbanos).
Certas pessoas pensam que, ao fazer um braço-de-ferro com Bruxelas, o Governo defendeu o interesse nacional.
Ora, não pode haver maior ilusão.
O interesse do país é ter as contas equilibradas e ir reduzindo a dívida.
Só a partir daí poderemos ter uma economia sã e dinheiro disponível para investir.
Tentar ‘enganar’ Bruxelas é enganarmo-nos a nós próprios.
Acresce que este diferendo com a Comissão Europeia lançou desconfianças sobre a disposição de Portugal para cumprir os seus compromissos internacionais – e isso é péssimo.
Depois da quase bancarrota de 2011, Portugal levou tempo a recuperar a credibilidade internacional, mas conseguiu-o.
Melhorou o rating (se continuasse no mesmo caminho sairia do lixo este ano), reduziu tremendamente os juros da dívida e em toda a parte era já apontado como um exemplo.
Hoje, pelo contrário, todos receiam que Portugal se torne uma nova
Grécia.
Será que o PS, o BE e o PCP acham que é assim que se defende o interesse dos portugueses?
Os líderes da esquerda falam constantemente da ‘Constituição’, da ‘soberania’, do ‘respeito pelo voto dos portugueses’ – mas de que valerá tudo isso se Portugal perder a credibilidade lá fora e ninguém nos financiar?
Tudo isto é muito bonito quando um país não deve dinheiro ao exterior e não precisa de pedir emprestado.
Mas não é essa a nossa situação.
Às imensas interrogações que o projeto de Orçamento levanta, que levaram a Comissão Europeia a sublinhar ontem o «risco de inconformidade» (ou seja de incumprimento), somam-se as dúvidas sobre o homem que o vai executar.
Basta olhar para Mário Centeno para perceber que é um teórico, não é um homem feito para estas andanças.
Um ministro das Finanças tem de ser capaz de dizer ‘não’ aos ministros.
Manuela Ferreira Leite fazia-o, Vítor Gaspar também, Maria Luís Albuquerque igualmente, mesmo Teixeira dos Santos.
Mas alguém está a ver Mário Centeno a enfrentar António Costa, ou Augusto Santos Silva, ou o ministro da Saúde, ou mesmo João Soares?
Ninguém.
Ainda por cima, para lá do low profile do ministro das Finanças, Costa tirou-lhe força ao pô-lo como n.º 4 do Governo.
Foi o mesmo que dizer que ele manda pouco.
Só que, pôr um homem que manda pouco no meio de um turbilhão de pressões – dos colegas de Governo, do BE, do PCP, de Bruxelas – é entregá-lo aos bichos.
Como conseguirá Centeno resistir a tudo isto?
Mesmo depois de conseguir a aprovação do Orçamento, alguém acredita que o conseguirá cumprir?