Dir-me-ão que em Portugal também é ainda comum ver a culpa de uma violação ser atribuída à vítima; o machismo consiste numa forma de poder autocrático e não se extirpa por decreto – nenhum grupo organizado está disposto a abdicar do seu poder, até porque o poder tem como contraponto o medo.
São ainda poucos os homens capazes de entender que a partilha das responsabilidades conduz à perda do medo e, portanto, ao aumento das hipóteses de felicidade.
Mas não há comparação possível entre a mais imperfeita das democracias europeias e um estado de terror, como são todos os Estados Islâmicos.
A cedência das autoridades italianas à ‘cultura’ do Irão, mandando tapar as estátuas dos museus para não ofender a ‘sensibilidade’ do Presidente de um país responsável por homicídios e torturas quotidianas é intolerável.
A contemporização com as ‘culturas outras’ não pode ultrapassar a linha da liberdade de expressão e dos direitos humanos, que são o centro radioso – e único – da Europa. Perdido esse farol, o que nos resta?
Há quem queira reduzir este gesto italiano a um incidente sem importância – uma simples demonstração de cortesia e de empenhamento no diálogo. Mas o que pode resultar de um diálogo que começa pela abdicação de valores essenciais?
Não se trata de medir forças; o discurso da ‘submissão’, popularizado pelo vivaço escritor francês Michel Houellebecq, é poucochinho: mais do que o acatamento de um totalitarismo que usa o Corão como pretexto para os seus crimes, o que a Itália fez foi tornar-se cúmplice disso a que Hannah Arendt chamou «a banalidade do mal».
Os torcionários nazis repetiam que se limitaram a cumprir ordens: não se sentiam sequer tocados pela culpa, porque apenas fizeram o que lhes mandaram.
Não consegui perceber de onde emanou a ordem de tapar as estátuas – e provavelmente será difícil de entender: o governo italiano afirmou não ter dado essas ordens, e na cadeia protocolar todos se escudarão em poderes alheios – assim funciona a burocracia, e por isso é tão resistente: consegue sempre empurrar a responsabilidade para as estrelas.
Foi contra esta desculpabilização endémica e acrítica que um conjunto de grandes filósofos europeus desenhou o movimento intelectual a que se chamou Iluminismo e que consistiu no exercício do pensamento crítico e de uma ética humanista sobre todas as ‘tradições’ e ‘culturas’ que desprezassem a auto-determinação e a liberdade individual.
A resposta pífia e afrontosa que a Europa está a dar à odisseia dos refugiados demonstra que, após o Holocausto, continuamos a aceitar tranquilamente a banalidade do mal: dormimos descansados enquanto milhares de desesperados morrem no Mediterrâneo, a Dinamarca pretende tirar as poucas posses a quem nada tem, argumentando que é isso o que faz aos seus sem-abrigo, a troco de proteção social – como se as situações fossem comparáveis.
No mundo em que a impiedade se torna banal, cada um lava as suas mãos, como Pilatos, dizendo que fez o que pôde ou que apenas cumpriu ordens. É essa atitude, e não o défice, que está a esfarelar a Europa.
Em 2012, enquanto responsável pela programação da Casa Fernando Pessoa, recebi da embaixada do Irão a proposta de um festival de poesia iraniana e portuguesa.
Comecei por responder, diplomaticamente, que a programação do ano estava fechada. Como a embaixada insistisse em agendar o evento para o ano seguinte, respondi, claramente, que não poderia pactuar com a farsa de um festival de poesia vindo de um país onde os direitos humanos são letra morta, as mulheres não têm direito à palavra e os escritores estão ou presos ou exilados.
Replicaram-me com a história da brilhante civilização persa e deploraram-me a cegueira eurocêntrica, que me impedia de aceitar visões outras de conceitos como ‘direitos humanos’.
Retorqui que, quando a civilização persa fosse honrada pelo actual Irão, poderíamos falar. Creio que essa conversa permanecerá adiada por muitos anos – e mais ainda se a Europa continuar a ter vergonha de defender o seu rosto luminoso, duramente conquistado às trevas.