Mantém-se a regra segundo a qual o povo de New Hampshire segue caminhos diferentes do povo de Iowa: neste último estado (mais conservador e com uma presença decisiva de eleitores evangélicos), Ted Cruz venceu do lado republicano e Hillary Clinton, mais discutivelmente, venceu no lado democrata; ontem, em New Hampshire (mais liberal, centrado em aspectos económicos e menos em questões comportamentais e morais), venceram Donald Trump e Bernie Sanders. Para onde vai o Iowa – não vai o New Hampshire. Algumas tradições na política norte-americana ainda são o que eram.
2.Quem está a romper com a tradição, com o sistema político tradicional, com os centros políticos tradicionais – é, definitivamente, Donald Trump. E o que tem Donald Trump? Será um produto da “estupidez” americana, sociedade obcecada com o espectáculo, como escreveu Clara Ferreira Alves? Esta justificação só faz sentido na perspectiva dos (falsos?) intelectuais europeus, os quais estabelecem comparações destituídas de sentido como “Trump é o novo Berlusconi” ou “Trump é o Beppe Grillo americano”. Donald Trump não é tão bom como o próprio se assume – nem é tão mau como os seus críticos (e são muitos!) o descrevem. Donald Trump não é a nova encarnação do “homem sem qualidades” – Trump tem muito mérito e qualidades. Um homem “burro”, “sem qualidades” (como a elite europeia o pinta) não conseguiria alcançar os méritos profissionais e empresariais que Donald Trump alcançou. Trump é um homem de elevada visão empresarial, trabalhador e que preza muito a meritocracia. É verdade que recebeu uma ajuda preciosa de seu pai no lançamento da sua carreira empresarial: mas quantos empresários, quantas pessoas, mais ou menos conhecidas, receberam ajudas dos respectivos progenitores – e a desperdiçaram? E quantos já levaram ao colapso dos impérios empresariais dos seus pais? Além disso, Donald Trump – versão confirmada pelos mais próximos – pagou, com juros, o empréstimo concedido pelo seu pai.
3.Com visão empresarial e dotes de negociador nato, Donald Trump construiu um império e uma reputação à prova de bala, nos EUA e no mundo. Com destaque para a sua cidade: a mítica e fascinante” New York City”. Trump é um yankee convencido e convincente. Há, pois, que distinguir o Donald Trump, homem muito inteligente, de qualidades empresariais indiscutíveis, patriota e moderado – do Donald Trump, personagem política para conquistar votos nos sectores mais conservadores nos Estados Unidos e derrubar a elite dominante no” Grand Old Party”. Donald Trump – numa prova inequívoca da sua inteligência analítica – percebeu que esta era a sua oportunidade de ouro para se afirmar como candidato presidencial. Porquê? Porque Donald Trump já o tentara no passado, sem sucesso, em grande medida devido à oposição do “establishment” do GOP. Ora, perante o descontentamento geral dos americanos face às elites partidárias e, especificamente, face ao sentimento dos republicanos de que os seus altos responsáveis políticos os traíram – Donald Trump tem aqui o momento histórico de abalar a mesma elite que impediu a sua candidatura presidencial no passado. Mesmo que não venha a vencer a nomeação republicana, Donald Trump já venceu – agitou, preocupou, irritou o “establishment” do GOP.
4.E não será Donald Trump um radical? Não: a personagem política que Donald Trump criou para agitar a elite do GOP, e consequentemente viabilizar a sua candidatura, tem um discurso demasiado radical – apresentando mesmo propostas políticas ridículas e descabidas, como a expulsão dos muçulmanos do território norte-americano. Ou a construção de um muro na fronteira com o México – pago pelo próprio Governo mexicano. Esta última proposta é o equivalente a prometer que, no dia 24 de Dezembro, o Pai Natal vai chegar às chaminés de todos os americanos – e Donald Trump vai processá-lo se não aparecer ou chegar atrasado à chaminé de alguma casa americana!
5.Contudo, estas medidas néscias são mínimas no pensamento político de Donald Trump. No seu livro mais recente intitulado “ Crippled America –How to Make America Great Again”, Trump expõe a sua estratégia para construir um futuro mais próspero para os americanos de forma clara e com domínio dos problemas fundamentais do país. Nele, as medidas como obrigar o México a pagar o muro ou a expulsão dos muçulmanos (que, no livro, apresenta como medida temporária) ocupam quatro ou cinco páginas. O que releva é o verdadeiro Trump – o conhecedor da vida empresarial, o que sempre defendeu a revivescência do “sonho americano”. Por exemplo, Donald Trump apresenta uma proposta de sistema fiscal muito equilibrada e justa, que, aliás, já mereceu o elogio de pensadores de esquerda: pretende-se taxar mais os hedge funds, os fundos de investimento e os ganhos de Wall Street, para aliviar a carga fiscal da classe média.
5.1.Ao mesmo tempo que se propõe simplificar e agilizar as leis fiscais e os procedimentos da administração fiscal. E as empresas que voltarem a localizar os seus centros de produção nos EUA terão direito a um regime fiscal mais favorável se criarem postos de trabalho. Já na Educação, Donald Trump revela um conhecimento dos problemas deste sector, apresentando várias propostas muito sensatas e que vão no caminho certo: valorizar os alunos, valorizar o trabalho árduo logo nos primeiros níveis de escolaridade – e contratar os melhores professores, criando um sistema de formação dos docentes altamente exigente e competitivo. Isto beneficiaria as escolas geridas por entidades públicas que poderiam contratar professores de elevado nível, que poderiam concorrer com as privadas.
6.Por último, quanto à “Obamacare”, Donald Trump (o que é curioso!) não ataca os princípios subjacentes a este seguro de saúde universal público – apenas discordo da sua concretização. Trump critica este programa da Adminsitração Obama – mas critica, em termos mais ferozes, o sistema anterior na área da saúde (a” Medicare” e a “Medicaid”). Parece-nos que Donald Trump defende um sistema intermédio, com uma solução preferencialmente privada (com concorrência na área dos seguros, a nível federal, o que é possível actualmente), mas com a intervenção do Estado para corrigir injustiças. De forma subsidiária (garantir o acesso aos cuidados de saúde a todos os que, pelo funcionamento das regras de mercado, não o conseguiriam) e menos burocrática que o programa “Obamacare”.
7.Enfim, o Donald Trump verdadeiro, não personagem político, é um homem com ideias sensatas e inteligentes. Pena é que, na presente campanha eleitoral, só tenhamos visto a verdadeira índole de Donald Trump por uma vez: na sua resposta a Ted Cruz, quando este criticou Trump por representar os “valores de Nova Iorque”. Trump defendeu, soberbamente, a sua cidade e os seus “vizinhos”, relembrando Ted Cruz do heroísmo e da capacidade de resistência que a cidade de Nova Iorque revelou, após os atentados de 11 de Setembro de 2001. Donald Trump é muito mais moderado do que Ted Cruz. Julgamos que Donald Trump vai agitar os republicanos, mas não conseguirá a nomeação para defrontar Hillary Clinton – ainda assim, Trump já venceu. E o New Hampshire já é dele.