A atitude paternalista não é mais do que um disfarce do autoritarismo: o seu ponto de partida é a convicção arrogante de uma sabedoria superior que pode e deve impor-se aos menos dotados de saber ou discernimento.
Os estragos que o paternalismo tem causado ao mundo são visíveis, e estão a propagar-se. Esta arrogância tem servido para diminuir a inteligência e a autonomia de gerações de crianças e velhos, atrasar a igualdade de direitos entre homens e mulheres e prolongar o racismo e a xenofobia.
O paternalismo é a ditadura disfarçada de democracia. O kitsch que substitui a autenticidade nas relações sociais. A maldade mascarada de bondade. A desconsideração do outro – que implica sempre uma profunda desconsideração de nós mesmos, porque pretender limitar outrem é assumirmo-nos como limitados.
Um exemplo acabado de paternalismo é a defesa dos referendos em matérias de consciência individual – ou seja, em matérias que não afetam terceiros.
Se eu decidir que não quero viver agarrada a uma cama, em dor permanente, essa decisão afeta-me apenas a mim. Só almas congeladas no seu próprio egocentrismo poderão argumentar, sem corar, que tal decisão afeta também aqueles que me amam.
A resposta é óbvia, para quem não tenha os canais da empatia entupidos: o princípio do amor é o respeito incondicional pelo ser amado.
Que amor é esse que exige a alguém que aceite vegetar a bem da tranquilidade ou do consolo alheios?
Graças ao fracasso global daquilo a que se chama educação, que prescinde escandalosamente da Filosofia – que devia ser a sua base – há cada vez menos empáticos genuínos, capazes de pensar e sentir a partir do seu sangue e de formular a sua própria voz.
A liberdade individual tornou-se, no mundo contemporâneo que enche a boca com os direitos, uma ‘questão fraturante’.
Porquê? Porque a auto-determinação exponencia o pensamento, e gente que pensa pela sua própria cabeça torna-se um incomodativo obstáculo na eficiência circular e controlada dos poderes instituídos.
A auto-determinação pode levar a descobrir as fissuras das aparências democráticas e a exigir mudanças no sistema.
Nos regimes supostamente democráticos o poder exerce-se através de um mecanismo de dança inter-partidária desenhado como baile comunitário. O contributo efetivo do povo é diminuto (a União Europeia mostra-o bem), mas convém que ele não se aperceba disso, e se mantenha entretido e sossegado.
Não há nada de fraturante no facto de exigirmos que a nossa dignidade seja respeitada, de acordo com a íntima definição que fizermos dela. É apenas disto que se trata, quando reivindicamos uma lei da eutanásia.
Ninguém é obrigado a praticar eutanásia se o não desejar; mas aqueles que o desejarem deverão ser livres de o fazer.
Este direito é independente do dever – que o Estado português não tem cumprido – a prestar cuidados paliativos de qualidade. Demasiadas vezes, a simples experiência de um parto basta para nos apercebermos a que ponto os direitos de quem sofre são desprezados.
A maioria dos velhos portugueses são atulhados de medicamentos e despachados a alta velocidade das consultas como trastes incómodos que não merecem o esforço da cura.
A correção deste panorama ignominioso não pode confundir-se com a negação do direito à morte assistida.
“Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada”, reza o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Dizer-se que a lei da eutanásia poderá conduzir a homicídios encapotados por parte de herdeiros sôfregos é uma desculpa esfarrapada – e, uma vez mais, paternalista: basta que se confirme, de forma independente, a vontade do requerente.
O que pressupõe que se considere esse requerente como um ser tão respeitável como qualquer um de nós. Capaz de escolher. O mundo contemporâneo tem de se habituar ao valor da livre escolha – sem esse, não há mais nenhum.