O destino das crianças: Estado “Big Brother” ou Estado negligente?

1.Tragédia e terror: a morte das duas crianças no Rio Tejo, em circunstâncias ainda por esclarecer, chocou-nos a todos. A morte de um ser humano relativiza os demais problemas que enfrentamos diariamente, como um Governo sem rumo ou uma economia anémica com finanças em crescente turbulência. Quando duas crianças – símbolo da esperança, da alegria…

2.Diz-se com frequência que o Homem, dotado de livre arbítrio, pode optar por seguir o caminho do bem ou o caminho do mal. Os actos de monstruosidade, de crueldade, de negação da ética e da axiologia mínima imanente à vida social são condições normais da nossa condição humana – por conseguinte, Hannah Arendt defendeu que o mal é uma banalidade. O nosso tempo, tal como havia sido o século XX, é marcado pela “banalidade do mal”.

 2.1. O que nos parece um exagero: é verdade que constatamos diariamente exemplos flagrantes de maldade e terror – mas também existem (e, felizmente, maioritariamente) exemplos de bondade, generosidade e de grandeza ética. Significa isto que existe, isso sim, uma “banalidade do bem” – a qual convive com actos de maldade gratuita. A “banalidade do mal” é relativa; a “banalidade do bem” é permanente.

2.2. Infelizmente, a “banalidade do mal” produz vítimas. Ninguém conseguirá devolver a vida às duas crianças que faleceram no Rio Tejo, na passada terça-feira (em rigor, uma das crianças continua desaparecida: a probabilidade de sobreviver diminui à medida que o tempo avança). Podemos, no entanto, criar o enquadramento institucional que permita reduzir a possibilidade de nova tragédia ocorrer. E este desafio exige um esforça da sociedade (de todos nós) – e não apenas do Estado.

3.De facto, é curioso notar que os comentadores – e a generalidade dos cidadãos portugueses entrevistados pelos vários órgãos de comunicação social – imputaram a culpa pelo sucedido ao Estado, designadamente à Comissão de Protecção de Menores (alguns opinadores falaram mesmo em negligência grosseira do Estado, mais do que em negligência parental). Pois bem, aqui importa frisar que, em primeira instância, a responsabilidade pela colocação das crianças em perigo é dos pais: a eles, compete-lhes o exercício das responsabilidades parentais.

3.1. Numa sociedade democrática, as famílias gozam de liberdade de direcção da educação dos filhos: é-lhes, ainda, garantida constitucionalmente a protecção contra intromissões indevidas do Estado na sua vida privada e familiar. Ora,  os comentadores que acusam o Estado de ser o principal responsável pela tragédia ocorrido às duas crianças em Caxias – são os mesmos que se revoltam contra o Estado “Big Brother”, cerceador das nossas liberdades e direitos fundamentais. O Estado não se pode alhear de tutelar a segurança das crianças, mesmo contra agressões perpetradas pela própria família; contudo, é uma impossibilidade lógica os meios públicos vigiarem a vida familiar a toda a hora. O dilema da Comissão de Protecção de Menores é o mesmo dilema das forças policiais.

4.Por outro lado, o quadro normativo em que a Comissão de Protecção de Menores se move é estabelecido pelo legislador democrático: o regime vigente pode ser insuficiente para lidar com casos dramáticos. A filosofia subjacente à Lei de Protecção de Menores e Jovens em Risco é a de assegurar a intervenção mínima do Estado na vida familiar: só em casos extremos, as autoridades públicas poderão intervir. Mais: a medida de protecção que merece preferência pelo legislador é a de colocação da criança no seio da família biológica, sob monitorização da Comissão de Protecção de Menores.

4.1.Só em  circunstâncias de elevado risco actual – de comprovação da inviabilidade do meio familiar biológico para permitir à criança um saudável desenvolvimento físico, cognitivo e emocional – é que as autoridades públicas poderão aplicar medida mais gravosa, retirando a criança do lar familiar. Isto porque – reiteramos – se entende que se trata de uma medida restritiva do direito fundamental à vida familiar e à reserva da intimidade da vida privada. Será este o quadro legal mais adequado para assegurar a protecção das nossas crianças, logo, do nosso futuro? Temos dúvidas. Estamos, no entanto, cientes que é um equilíbrio complexo de fazer: no Reino Unido, vigora um regime muito mais restritivo e de intervenção drástica na vida familiar logo que surja uma suspeita de negligência parental, o qual tem sido objecto de muitas e variadas objecções.

5.Importa, pois, discutir, sem complexos, esta matéria de forma rigorosa e ponderada. Que o debate que se iniciou fruto da tragédia não se esgote no mediatismo das audiências ou no sentimentalismo fácil das redes sociais. Já que não podemos salvar as duas crianças, resta-nos evitar que a nossa sociedade seja conveniente com ameaças (de qualquer tipo) aos menores. E, desta forma, evitar que a sua curta vida (de sofrimento?) não tenha sido em vão.

 6. Tememos, efectivamente,  que, daqui a um mês, já ninguém se interesse pelos assuntos relacionados com a protecção das crianças em risco ou com a garantia de igualdade de oportunidades para todos. Os políticos, porque as crianças e os jovens (adolescentes) não votam, logo não são relevantes; a pluralidade dos cidadãos, porque há assuntos mais prementes que os afectam de sobremaneira. Acaso, haverá assunto mais premente que construir uma sociedade mais justa e digna, sobretudo para as gerações futuras que dependem do nosso esforço no presente?