Para isso, a estratégia da advogada da mulher cabo-verdiana terá de passar pelo recurso a alguns dos artigos menos conhecidos do Código de Processo Civil (CPC). É nesta lei, mais em concreto no artigo 696.º, que se lê que uma «decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado português». Será esse o caso de Liliana e dos seus filhos.
Estado com pouca margem para recurso
Ao SOL, a procuradora Maria de Fátima Carvalho, agente do Governo junto do TEDH, confirma que «o CPC admite» que o processo possa vir a ser reaberto «em caso de inconciliabilidade entre a sentença do tribunal internacional/Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a sentença interna definitiva».
Mas para que isso aconteça é preciso que alguém atue e essa missão estará nas mãos da advogada de Liliana Melo, Paula Penha Gonçalves.
Francisco Teixeira da Mota, um dos mais experientes advogados portugueses em casos julgados em Estrasburgo, considera «possível que haja uma revisão» da decisão do Tribunal de Sintra, «tendo em conta o disposto na legislação».
Para já, corre o prazo para que Portugal interponha recurso para a Grande Chambre do TEDH. É o Estado quem marca o compasso no futuro imediato e, desse lado, está tudo em aberto. «Está-se a ponderar essa possibilidade (de recurso), para o que há ainda um prazo de três meses após a decisão do Tribunal Europeu», refere Maria de Fátima Carvalho, numa altura em que está pendente uma decisão do Tribunal Constitucional. «A existir um recurso, parece-me pouco provável que tenha sucesso, pela unanimidade da decisão», considera, por seu turno, Teixeira da Mota.
Se o recurso do Estado não avançar ou se for indeferido, a defesa de Liliana Melo poderá seguir imediatamente para o Tribunal de Sintra. Com a sentença dos juízes de Estrasburgo na mão, Paula Penha Gonçalves poderá requerer a reabertura do processo, com um pedido de revisão da sentença.
O CPC prevê que, nessa fase, o tribunal «profere nova decisão, procedendo-se às diligências absolutamente indispensáveis». O que significa voltar a ouvir testemunhas e fazer nova prova – na prática, repetir o julgamento.
Tribunal Europeu arrasa justiça portuguesa
A sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é arrasadora para os tribunais e serviços de proteção de menores portugueses. Os sete juízes foram unânimes em considerar que a advogada de Liliana Melo foi o único elemento a funcionar num processo que se arrastava. «A partir do momento em que teve representação legal, Liliana Melo levou o seu caso às mais altas instâncias para obter acesso aos seus filhos», algo que «contrasta com a abordagem que a mesma teve» até aí.
Sinalizada em 2007 pela Segurança Social, a família foi acompanhada desde essa altura, sendo impostas pelo tribunal várias condições para que a mãe pudesse ficar com os filhos. Além de garantir o sustento das crianças e jovens a seu cuidado no que toca a alimentação, saúde e um teto em condições – o pai era uma figura «ausente» –, Liliana Melo estaria obrigada a uma última condição: laquear as trompas.
Nunca o fez. E o tribunal de Sintra, com o respaldo posterior do Supremo Tribunal de Justiça, considerou que essa era uma das razões para fundamentar a retirada das crianças. Em Estrasburgo, os juízes fixaram-se nesta imposição em concreto. No acórdão em que condenam o Estado português por violação dos Direitos Humanos, o coletivo escreve que «a inscrição desta cláusula adicional no acordo de proteção [dos menores] foi uma opção particularmente grave».
O Tribunal Europeu considera que «os serviços sociais podiam ter recomendado métodos contracetivos de natureza menos intrusiva para resolver a falta de esforços de planeamento familiar» (além dos seis filhos que lhe foram retirados, Liliana Melo tem outro filho menor que na altura ficou à guarda do pai, tendo também ficado com uma filha que agora terá 15 anos e uma outra filha, já maior de idade mas que continua a viver com a mãe). E deita abaixo o grande argumento do juiz de Sintra: «O recurso a uma esterilização nunca deveria ser condição para suspender os direitos parentais».
Houve pouco esforço dos serviços sociais
Atualmente, a mãe das crianças e jovens tem trabalho e a «vida organizada». Mas a verdade é que só desde há um ano – e por decisão do Tribunal Europeu, também – é que pode visitar os seis filhos que lhe foram retirados. Semanalmente, desloca-se às três instituições diferentes em que eles foram acolhidos.
O TEDH refere que os serviços de proteção de menores «não tentaram compensar as insuficiências» que os técnicos constaram pessoalmente, «de forma a dar suporte financeiro adicional» à família. Em vez disso, esperaram que Liliana Melo apresentasse formalmente um pedido por escrito e requerendo apoio.
Bastante grave, para os juízes de Estrasburgo, foi o facto de a Justiça portuguesa ter decidido separar uma família onde não havia registo de violência e em que, pelo contrário, foram encontradas boas relações entre os vários irmãos e Liliana Melo.