O festival desliterário

O jorro da inspiração pode brotar do repuxo humilde de uma linha de jornal. Já assim sucedeu a Tolstoi, que viu nascer Anna Karenina na notícia do ferroviário suicídio de outra qualquer desgraçada.

A mim, acudiu-me há dias ideia de menor fôlego, porém tocada pela onda gravitacional do empreendedorismo que deve constituir a ginástica básica de qualquer ideia, nestes tempos de escassez.

Dizia ao Diário de Notícias um organizador de festivais literários: «Um dia, hei-de fazer um festival literário sem escritores!». Acrescentava até que, nos festivais que atualmente concebe, já está a polvilhar um ou outro músico nas mesas de escritores, para «alargar o espetro de público». De resto, há escritores que também são músicos, e pintores, e até os há-de haver marceneiros e canalizadores, que a necessidade aguça o engenho.

Há uns anos, exclamava um autarca, esfuziante, no discurso de encerramento de um festival literário: «Isto é tão bom que os escritores ainda hão-de pagar para aqui virem!». É natural que os escritores, só por si, não entusiasmem por aí além, dado que fazem uma coisa que qualquer pessoa é obrigada por lei a saber fazer, a partir, vá, dos dez anos de idade – porque os primeiros quatro anos letivos são para aprender o alfabeto e decorar o acordo ortográfico, que só se atinge por prolongado empinanço melódico, à maneira da tabuada.

Já a música interessa a toda a gente, porque o avançadíssimo sistema de ensino português tem tido a inteligência de a considerar dispensável. Assim, o país cobriu-se de festivais de música que os pais dos adolescentes vão pagando, num êxtase militante, aproveitando para andar mais a pé e fumar menos, como recomenda paternalmente o primeiro-ministro.

No intuito de acelerar o fluxo da transmodernidade, puxando pela minha evidente falta de testosterona (falta essa que gera fenómenos histéricos, discos voadores, legislação igualitária e a mania da novidade, como há semanas explicava Miguel Sousa Tavares nas doutas páginas do Expresso), avanço já para a proposta do ‘festival desliterário’ – uma espécie de descafeinado cultural que só faz bem à saúde.

Os participantes do festival desliterário serão os que provarem nunca ter lido um livro – nem sequer O Principezinho – e serem capazes de resumir todo o seu pensamento num total de dez sms. Comunicarão com o público através de uma app., e as mensagens escritas não poderão exceder os 140 carateres de um tweet.

As potencialidades de encontrar patrocinadores para o evento serão, deste modo, exponenciadas.

O habitual ‘pagamento simbólico’ aos conferencistas atingirá o seu auge expressivo, traduzindo-se numa simples sms com os caracteres: Ob.

Haverá, em contrapartida, prémios para o público: o mais rápido a enviar num sms com uma pergunta a um participante num debate ganhará um livre-trânsito para um festival de música, e os seguintes terão entradas gratuitas para festivais medievais, de chocolate ou de gastronomia. Desta forma, alcançar-se-ão sinergias importantes com esses bem-sucedidos eventos culturais.

Estranhamente, há pelo menos um festival literário – o Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim – que só apresenta escritores e esgota, durante quatro dias seguidos, um teatro de 700 lugares. Se calhar é porque existe há 17 anos – a edição deste ano cumpre-se agora, de 23 de Fevereiro a 1 de Março. Se calhar é porque mobiliza as escolas do país durante o ano inteiro. Se calhar só pôde crescer tanto porque os escritores não são pagos, e se calhar os escritores só aceitam ir lá porque se habituaram àqueles dias de convívio, ou porque gostam de adormecer a ouvir o mar e de, coitados, terem um teatro cheio a aplaudi-los.

Mas o certo é que a Câmara da Póvoa de Varzim provou que há uns portugueses esquisitos, de norte a sul, que marcam férias em fevereiro para se meterem em salas à cunha a ouvir escritores de língua portuguesa e espanhola, de todas as idades e feitios.

Um festival desliterário, porém, daria muito menos trabalho e seria mais barato. E não ensinaria nada a ninguém: anunciaria aquele futuro radioso em que nenhum de nós saberá coisa nenhuma, e por conseguinte ninguém será discriminado.

Suspeito que até já foi escrito o livro desse futuro, mas ficou no passado e já não interessa nada. Ainda se desse para cantar…

inespedrosa.sol@gmail.com