No prédio do Diabo descobri a luz

Hoje não me será possível escrever. Escrever o que se espera de mim, respeitar um espaço que é este e não outro, mas o que fazer? O que fazer quando nos morre alguém como a Joana, melhor amiga de juventude que me permitiu abrir horizontes e tornar-me o mundo menos estreito, do tamanho dos sonhos…

Tinha mais um ano do que eu. Uma filha, a Amélia, que é a sua cara e feitio, linda. Com ela (e a sua família) descobri uma consciência política e livros que me mudaram do avesso. ‘Privei’ na sua casa (centro de encontro do nosso grupo do liceu) com Giovanni Papini que a irmã Xénia defendia até à morte; conheci Kafka de fio a pavio; especulei com Sartre e Camus; perdi-me com Duras e Yourcenar.

Foi na casa da Joana, com longas e violentas discussões, que entendi melhor o poder das palavras, o músculo de que é capaz uma vírgula e uma convicção.

Morreu-me com pouco mais de 40 anos. Foi ontem, ou antes de ontem. Um telefonema de um amigo comum, a notícia, informações que precisei saber.

A Joana. Cujo pai, Augusto de Carvalho, dirigiu o Expresso antes de José António Saraiva (falámos nisto, lembra-se?); andava pela casa como se não fossemos adolescentes, como se já nos reconhecesse numa idade maior e tivéssemos uma missão que apenas ele parecia vislumbrar.

Um dia, na enorme sala decorada com Chichorro e Malangatana, o Augusto estava ao telefone com Samora Machel, parecia ser sério – fiz menção de sair, intimou-me a não o fazer, podia estar à vontade. Perguntou-me depois se desejava ser jornalista, não fazia a menor ideia mas disse-lhe que sim. Continuo a não saber e a dizer que sim.

A Ana, mãe da Joana e da Xénia, fazia como o marido. Entrava nas discussões como se fossemos ministros ou deputados na oposição.

Com 16 anos não sabia muito da direita e da esquerda, da dicotomia do Estado e do privado, do existencialismo, do maoísmo, de Cohn-Bendit, de Rosa Luxemburgo, de Olof Palme e dos movimentos independentistas africanos. Entrava nas discussões, dizia o que podia, refugiava-me no silêncio e ia para casa ler, estudar, ouvir, procurar.   

A Joana mostrou-me a Geni de Chico Buarque. Obrigou-me a tomar partido pelo Adriano Correia de Oliveira contra o Zeca (só para ser do contra), falava-me de Forles, perto de Vila Nova de Paiva, terra de cabras e cabrestos de onde o pai saíra para ser sacerdote, o que não aconteceu.

Mostrava-me os poemas sem pontuação, a revolução estava dentro de cada, nas palavras que cada um fosse capaz de inventar e tornar vivas. No mesmo prédio ficava o jornal semanário Diabo e a Vera Lagoa ainda era daqui, apanhei-a várias vezes no elevador – depois do episódio de Machel passei a estar à vontade em qualquer lugar e com qualquer personagem.

O quarto da Joana era o maior da casa. Às sextas, o nosso grupo gastava lá os cartuchos, pelo menos até ao último autocarro. Nunca os pais nos incomodaram. No final da noite, apanhava o 9 para Campo de Ourique e deitava-me com vontade que chegasse a manhã para poder saber mais, ouvir mais, viver mais.

A Joana Zaara de Carvalho morreu. Faria amanhã 46 anos. Continuava a querer mudar o mundo e a escrever poesia, a procurar saídas para um lugar ferozmente injusto, a berrar contra a iniquidade, a perversidade, a ganância. Continuava a ler e a gostar de ir a restaurantes chineses onde almoçávamos quando vinha a Lisboa.

Hoje não me será possível escrever. Por tudo isto e por tudo o resto.  

luis.osorio@sol.pt