O respeito pela individualidade das crianças é uma coisa novíssima na humanidade: a bem dizer, nasceu depois da segunda guerra Mundial. Até aí, as crianças eram entendidas pelos pais como uma força laboral gratuita que se transformaria com o tempo num apoio para a velhice.
A morte de duas meninas, alegadamente afogadas pela mãe, levou muitas almas condoídas a manifestarem-se solidárias, na teia de boas consciências das redes sociais, com o suposto desespero da progenitora alegadamente homicida. Não ocorre a estas almas caridosas considerar os direitos fundamentais das crianças, que neste caso não chegaram a ter sequer idade para experimentar o consolo da solidariedade virtual concedida aos desesperados do mundo.
Nestas situações, recordo sempre o estribilho de uma amiga, enfermeira de saúde mental, quando ouve desculpar alguma maldade cometida a coberto da doença psiquiátrica: «É doente, mas não senta o rabo no forno quente».
Uma pessoa que se pense indispensável aos filhos não tem maturidade para criar ninguém.
Não tenho a menor compaixão por pais ou mães suicidas; parece-me óbvio que a decisão de procriar implica um compromisso inabalável com a vida: um progenitor que se mata descarrega nos filhos um feixe de raiva e culpas, ou seja, maltrata-o.
Porém, mais vale uma vida com culpas do que vida nenhuma.
Um pai ou uma mãe que matam os filhos pensando poupá-los às agruras da vida são, no meu entender, assassinos agravados pela presunção de serem deuses. Essa presunção, por si só, já faz muito mal à humanidade: tem fabricado gerações de infelizes, irresponsáveis, mimados imorais e inseguros, incapazes de qualquer escolha pessoal.
Em O Arranca-Corações, Boris Vian descreveu os extremos a que a perversão do amor materno pode chegar, através de uma personagem que constrói uma gaiola para ‘proteger’ os filhos.
Quando esta ‘proteção’ se transforma em homicídio, a tendência imediata é transformar em verdugo a sociedade no seu todo: das instituições de proteção de menores e da polícia à família, aos vizinhos e, em última instância, à ‘comunidade’, que tem a vantagem de ser difusa e enevoar ainda mais a análise, evitando soluções futuras.
Na defesa do alardeado ‘superior interesse da criança’, há uma série de absurdos que me custam a entender, o primeiro dos quais é o seguinte: por que não funcionam as comissões de proteção de crianças e jovens dentro das instituições judiciais? Que sentido faz criar comissões de proteção que só podem intervir com o consentimento dos pais – sendo muitas vezes estes os próprios abusadores?
As comissões despacham para o Ministério Público, que tem milhares de processos e demora a reagir. Se todos os pais fossem obrigados a levar ao médico, periodicamente, os filhos menores de três anos, a deteção dos abusos seria muito mais eficaz. Bastava instituir uma lei decretando que quem não o fizesse incorria em crime: a penalização financeira não basta porque, ao contrário do que gostamos de pensar, há um mar de abusos indetetados nas classes sociais de maiores rendimentos.
A partir dos três anos, a escolaridade deveria ser obrigatória, não só porque está provado que a escolarização precoce acelera as capacidades cognitivas, mas também porque a escola possibilita a descoberta dos abusos – sendo para isso necessário que as turmas sejam pequenas e que haja psicólogos residentes.
Ao Estado cabe salvaguardar os direitos dos seus cidadãos – incluindo, obviamente, as crianças. Para isso, tem de começar por passar a mensagem de que os filhos não são propriedade dos pais.
Uma outra medida básica seria a de, nos casos de regulação do poder paternal, quando os menores são ouvidos à porta fechada, proibir a entrega aos pais da gravação do depoimento do menor. E claro que deviam impor-se penalizações severas aos meios de comunicação que devassassem a intimidade das crianças, publicando as suas declarações.
Estas são medidas tão evidentes que não sei como pode um Estado dito democrático viver sem elas.