O Grande Auditório da Fundação Gulbenkian recebe hoje às 19h00 aquele que é considerado um dos gigantes do piano contemporâneo, o russo Grigory Sokolov. Pianista de culto, a crítica internacional já lhe chamou de tudo: ‘lenda’, ‘colosso’, ‘quase-mito’, ‘filósofo das teclas’, ‘poeta do piano’ e até ‘extraterrestre’. Os bilhetes para o concerto de Lisboa, com um custo entre 22 e 50 euros, encontram-se esgotados desde setembro. Terça-feira, dia 6, é a vez da Casa da Música, no Porto, o receber.
Num artigo intitulado ‘O maior pianista vivo’, publicado pelo Telegraph em 2009, o músico e crítico James Rhodes descrevia-o assim: «Grigory Sokolov é um pianista na casa dos 50; com excesso de peso, russo, dorme apenas três ou quatro horas por noite, é um vegan rigoroso e obcecado com o oculto. Consegue calcular num vislumbre quantos lugares há num auditório vazio e lembra-se instantaneamente, com uma margem de erro de uma polegada, onde estava o piano num palco onde não tenha tocado durante anos».
Miguel Sobral Cid, diretor adjunto do Serviço de Música da fundação, traça-nos uma imagem menos romântica do pianista. «É uma pessoa muito discreta, não é nada aquele pianista muito exacerbado, mesmo na maneira de tocar. É muito parco nos gestos, eu diria que ele quase se funde no piano – ele e o instrumento são o mesmo».
Essa ‘fusão’, revela o responsável da Gulbenkian, assenta num conhecimento íntimo e profundo do piano – não só da sua mecânica, em geral, mas de cada instrumento em particular. «Temos vários pianos aqui na Gulbenkian que os pianistas podem experimentar. Ele anda com um pequeno livro de apontamentos onde tira notas sobre cada um dos instrumentos que visita e que conhece ao mais ínfimo detalhe, quase como se fosse uma peça de relojoaria. Daí que qualquer som que saia daquelas mãos, ou dos pianos que ele toca, tem uma construção muito própria».
‘Magia sonora’
Nascido em Leninegrado (atual S. Petersburgo) em 1950, Grigory Sokolov começou a estudar piano aos cinco anos. Aos 12 deu o seu primeiro grande recital em Moscovo e aos 16 venceu a medalha de ouro da Competição Internacional Tchaikovsky, na categoria de piano. Estudou com o lendário Emil Gilels e no final da década de 60 e início de 70 era uma presença assídua nas salas de concerto norte-americanas. «Mas depois houve um corte de relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, devido à Guerra do Afeganistão. Em 1980 uma tournée nos Estados Unidos foi cancelada», recordou o pianista. Durante muitos anos o seu nome manteve-se pouco conhecido no Ocidente.
Recentemente, Sokolov deixou de gravar em estúdio para se dedicar exclusivamente aos espetáculos ao vivo. E prefere recitais a solo – «pois com orquestra não é fácil encontrar tempo suficiente para ensaiar, ou uma orquestra que esteja interessada no resultado final e não em olhar para o relógio», justificou à publicação International Piano. É o que vai acontecer no princípio de noite de amanhã na Gulbenkian: o programa prevê a interpretação de duas obras de Schumann (Arabesk, Fantasia em dó maior) e três de Chopin (Nocturnos op. 32, n.º 1 e n.º 2, e Sonata n.º 2).
«A Fantasia em dó maior é uma obra muito conhecida do repertório pianístico, mas não é das mais fáceis, não é daquelas obras que a pessoa cantarola», nota Miguel Sobral Cid. «Ele não facilita, não é por aí que ganha o seu público – é precisamente por causa da magia sonora, dessa perfeição que leva ao extremo, quer em termos da sonoridade, quer em termos do detalhe técnico». Por isso, continua o diretor adjunto do Serviço de Música da fundação, «cada som que ele emite – ou melhor, que faz o piano emitir – é como se fosse uma pequena joia».
O ‘caso Lebrecht’
Apesar da aclamação generalizada e de esgotar as salas por onde passa, a vida de Sokolov não tem sido isenta de sobressaltos. Em 2009 teve de cancelar um concerto em Londres por uma questão burocrática, depois de ter recusado deslocar-se à Rússia para tirar impressões digitais, necessárias para obter um visto de entrada no Reino Unido.
Mais recentemente, Sokolov voltou a estar envolto em polémica, ao recusar o prémio de música da cidade de Cremona 2015. «De acordo com as minhas ideias sobre a mais elementar decência, é uma vergonha estar na lista de vencedores com Lebrecht», explicou. Referia-se ao crítico Norman Lebrecht, o qual, aquando da morte da mulher de Sokolov, em janeiro de 2014, «destacou que era viúva do seu primo (um célebre fagotista) e que era muito mais velha do que ele», esclarece o diário especializado espanhol Mundo Clasico, o que terá estado na origem do desentendimento.
‘Há públicos que o perseguem’
Sobral Cid desvaloriza estes incidentes, preferindo sublinhar as qualidades do intérprete que, juntas numa mesma personalidade, lhe dão «uma aura de grande pianista e de grande artista. E daí que seja tão fácil ele agradar a um público muito alargado». Oresponsável chama ainda a atenção para o caráter excecional de cada concerto. «Cada recital é um momento muito particular. Não é igual ao último, não é igual ao penúltimo, nunca será igual a nenhum outro. Dele tudo se pode esperar. Daí que há públicos que vêm a todos os recitais que Sokolov dá, que ‘o perseguem’, porque de facto é um momento, é o momento». Não é improvável por isso que, à semelhança do que acontece com as estrelas do rock, haja fãs vindos do estrangeiro nos concertos que vão realizar-se em Portugal.