Escrever para não esquecer é um bom exercício para perpetuar acontecimentos. Por considerar que uma manifestação que juntou 100 mil professores é algo digno de registo, PauloGuinote juntou no livro Memórias da Grande Marcha dos Professores uma série de depoimentos, textos de blogues e manchetes de jornais do dia do protesto, 8 de março de 2008. Numa espécie de desafio, pusemos o historiador da educação na posição que mais polémica causou nessa altura, quando o Ministério tinha ao comando Maria de Lurdes Rodrigues: a de avaliador.
O modelo de avaliação de desempenho da ministra acabou por não avançar, mas Guinote recusa pensar na manifestação como a força que faltava para um início. «Estávamos apenas numa fase inicial ou intermédia de um processo ainda em curso». Mesmo assim, aqui fica o desafio. Senhor professor, o que mudou desde 2008?
Imagem da classesaiu reforçadado conflito
Ao contrário de muitas opiniões impressionistas, acho que a imagem pública dos professores saiu reforçada daquele intenso e longo conflito com o poder político, algo que é confirmado por todos os estudos de opinião que abordam a credibilidade e grau de confiança nas profissões. Os professores surgem sempre nos primeiros lugares, sendo apenas ultrapassados por bombeiros ou outras profissões de elevado risco.
Autoridade há muito em erosão
A questão da ‘autoridade’ costuma confundir-se com o poder punitivo do professor perante os comportamentos dos alunos, o que pode tender para uma confusão com o autoritarismo e o uso arbitrário do poder disciplinar. A autoridade do professor entrou em erosão nas últimas décadas do século XX principalmente com a divulgação, em termos simplistas, de teorias pedagógicas igualitaristas e com o uso errado da tese de que ‘o aluno está no centro de tudo’, como se o papel do professor fosse secundário. Ora o que está no centro de tudo é a necessidade de transmissão geracional de conhecimento, sem a qual não existiria a necessidade da relação professor/aluno.
Atual organizaçãoe gestão É nociva
Os últimos anos assistiram à consolidação de duas tendências que acho profundamente nocivas e que resultam da aplicação de teorias de gestão, importadas do mundo empresarial para as escolas. Uma delas foi a imposição de um modelo único de administração escolar, que eliminou quase todos os vestígios de procedimentos democráticos nas escolas. A outra foi a reconfiguração da rede escolar, tornando-a concentracionária e macrocéfala, mesmo a nível local. Resumindo, apostou-se na transformação da organização escolar num simulacro de ‘empresa’ em que os alunos perdem o seu rosto individual para se tornarem ‘clientes’ de um ‘serviço’ cujo ‘patrão’ (Estado) deve assegurar com base no menor encargo possível.
Crato continuou políticas do PS
O anterior Governo constituiu-se, no essencial, num continuador das políticas anteriores, de reforço do controlo burocrático das escolas e professores, de redução brutal da rede do 1.º Ciclo, alimentando assimetrias graves no país, empobrecendo o currículo e precarizando a condição profissional dos docentes. Nuno Crato foi uma enorme desilusão porque traiu na sua ação política muitos dos princípios que enunciara enquanto popular analista do fenómeno educativo.
Sindicatos burocráticos e nem sempredemocráticos
Os sindicatos são um elemento essencial da vida democrática e o professorado é das classes profissionais mais sindicalizadas. O que acho é que, gradualmente, os sindicatos se tornaram organizações burocráticas como outras, que privilegiam a ordem, a hierarquia e a disciplina, ao que acresce o problema da sua politização no sentido partidário. A perceção que tenho é que o seu papel em termos de negociação é insubstituível, mas que o seu processo de tomada de decisões nem sempre é o mais democrático, assim como parte da sua elite diretiva se reproduz nos cargos, perdendo ligação aos professores em exercício.
Governo: algumas boas medidas,outras de 3º mundo
Ainda é difícil perceber-se se existe mesmo um novo rumo na Educação. Por via parlamentar, talvez para evitar o embaraço de uma iniciativa governamental nessa matéria, foram eliminadas as provas finais dos 4.º e 6.º anos, anunciando-se um sistema de provas de aferição que apresenta algumas ideias interessantes mas também falhas de conceção e, neste momento, claros atrasos no calendário da sua implementação, reforçando a ideia de que esta aferição de pouco vai interessar. Há algumas boas medidas que passam pela eliminação de péssimas decisões herdadas dos últimos governos, como a polémica Prova de Avaliação de Conhecimentos e Competências (PACC), a morosa Bolsa de Contratação de Escola (BCE) ou a via demasiado precoce do chamado Ensino Vocacional. Mas há também o anúncio de medidas que revelam uma conceção de escola algo terceiro-mundista como a ‘escola a tempo inteiro’.
Muita pressão para o ‘sucesso’
As principais mudanças passaram pela oscilação dos critérios de avaliação externa, com a extensão de provas finais a todos os ciclos do Ensino Básico pelo anterior Governo e a sua eliminação no 4.º e 6.º ano, por via parlamentar, no fim de 2015. Quando ao resto, permanece sempre a imensa pressão para produzir «sucesso» a todo o custo, atribuindo sempre a responsabilidade do «insucesso» dos alunos aos professores.