Nestas palavras Svetlana Alexievich, escritora bielorrussa galardoada com o Nobel da Literatura em 2015, descreve o dia em que ocorreu o maior desastre nuclear de sempre. Quase três décadas depois todos ouvimos falar, lemos, estamos cansados de saber. Mas se o acidente viria a contaminar nos meses seguintes quase três quartos da Europa, houve vidas sugadas pelo vórtice radioativo, pessoas que «mergulharam gradualmente na atmosfera de uma nova reflexão». Estas palavras são como infratoras na obra de Alexievich, uma rara intervenção em que assume o duplo papel de entrevistadora e entrevistada.
No livro Vozes de Chernobyl – que acaba de chegar às livrarias portuguesas com o selo da Elsinore – a autora que nos anos de juventude passou pelo jornalismo e desenvolveu um processo muito particular de abordagem à realidade, tornando-se a primeira escritora nobelizada cujos livros se compõem exclusivamente de testemunhos recolhidos ao longo de anos em sucessivas entrevistas. Neste livro crucial, aquele em que a autora não se limita a fazer as perguntas e escutar, filtrar ou limar, levar ao limite da afinação o coro trágico que emerge nestas páginas, assumiu-se ela própria como uma testemunha de Chernobyl – «o acontecimento principal do século XX, apesar das terríveis guerras e revoluções pelas quais este século será recordado».
E o que faz a centralidade daquele dia no passado e futuro de um século em que o horror pareceu triunfar sobre si mesmo, a um ponto em que se tornou um desafio conseguir encarar a realidade superando «a banalidade do horror»?
Alexievich acredita que Chernobyl foi «o início de uma nova história», um acontecimento que marca o ponto em que «o homem entrou em disputa com as antigas noções de si próprio e do mundo». Foi uma reviravolta que afetou decisivamente o trabalho desta escritora, que procurava «criar um novo texto», uma construção literária que pudesse capturar aquela «catástrofe do tempo». Ela esclarece que o livro não é sobre Chernobyl, mas sobre o mundo de Chernobyl”, porque «sobre o acontecimento em si já se escreveram milhares de páginas e filmaram centenas de milhares de metros de película. Pois eu ocupo-me daquilo a que chamaria a história omitida (…) Escrevo e recolho o quotidiano dos sentimentos, dos pensamentos, das palavras. Tendo captar a vida diária da alma».
Foi isso mesmo o que a Academia Sueca reconheceu na obra de Alexievich, o mérito de ter inventado «um novo género literário» que «funde literatura e jornalismo», criando «uma história das emoções, uma história da alma». Se todos os seus livros lidam com crises históricas – seja a II Guerra Mundial, a guerra soviética no Afeganistão, o desastre de Chernobyl ou o colapso da União Soviética –, o traço distintivo na sua abordagem é a forma como o faz a partir das vozes de pessoas comuns. Conta que naqueles primeiros dias «os filósofos e escritores que se viram fora dos habituais eixos de cultura e tradição calaram-se» e «era mais interessante conversar com velhos camponeses do que com cientistas, funcionários do governo e militares com grandes platinas. Aqueles vivem sem Tolstói e Dostoiévski, sem a internet, mas a sua mente acomodou de alguma forma o novo cenário do mundo».
O cerco à realidade
Poderosas e aflitivas, ao mesmo tempo terríficas e profundamente tocantes, as crónicas de Alexievich prosseguem no sentido oposto a uma literatura escapista, como notava o autor e historiador norte-americano Timothy Snider num artigo que assinou na The New York Review of Books. Ela não se deslumbra com as possibilidades imensas de explorar a realidade através da caixa de ferramentas da ficção. No campo assumido da subjetividade, o seu trabalho é o mais objectivo possível.
Desenvolveu o processo a que se mantém fiel até hoje ainda jovem, quando trabalhava em jornais na sua terra natal, nos anos 1980, quando cobria ela mesma os custos das viagens para fazer reportagens. Cedo se apercebeu de que não conseguia tirar notas à mão enquanto fazia entrevistas. Sentia a necessidade de preservar cada palavra que lhe era dita, incluindo os silêncios.
Naqueles dias um gravador na Bielorrúsia custava 500 rublos, cerca de três meses de salário, e ela pediu o dinheiro emprestado a escritores mais velhos, alguns dos quais tinham tido influência na sua forma de capturar a realidade. Começou então a gravar as conversas, a transcrevê-las, depois escrevia a partir destes testemunhos, muitas vezes ensaiando em voz alta os monólogos, «para testar a afinação e a unidade do discurso», como destaca o jornalista Paulo Moura no prefácio de Vozes de Chernobyl. Assim, Alexievich foi «limando, abreviando, simplificando, até encontrar uma voz coerente entre as múltiplas vozes – a sua voz autoral».
Trabalha em cada livro entre cinco a dez anos e estes representam os testemunhos de entre 300 e 500 entrevistados, mas são selecionadas cerca de 100 vozes, das quais entre 10 a 20 são aquelas a que chama os ‘pilares’, ou seja, aquelas pessoas que chega a entrevistar vinte vezes. De cada entrevista, cuja transcrição preenchia entre 100 a 150 páginas, usou em média 10.
«A inovação de Alexievich foi retirar do texto todas as ruminações, cronologias, e contextualizações. Considerou que a voz do autor não era, simplesmente, necessária. Deve permanecer nos bastidores, fazendo as perguntas certas, escolhendo as personagens mais interessantes, juntando as frases mais ricas. E apagar-se das páginas», lê-se no prefácio de Paulo Moura. Ou seja, a sua abordagem não impõe uma narrativa, não abre parêntesis para momentos de humor ou elementos distrativos. Portanto, não tempera, não é um sopa da pedra, é um caminho de pedras. Alexievich não se desvia do curso, não se lança em digressões buscando um significado ou qualquer forma de redenção. Se, como frisava Snider, o seu trabalho é muitas vezes comparado ao de Ryszard Kapuscinski, o lendário repórter polaco, ao contrário dele, Alexievich não cede à tentação de construir uma galeria de cativantes personagens através de um compósito de várias pessoas. Nos seus livros «não há personagens, apenas vozes», diz Snider.
Paulo Moura lembra que, «antes de aperfeiçoar o género que agora a carateriza, ela experimentou, ensaiou, arriscou. Escreveu peças de teatro e poesia, realizou documentários. Para chegar à realidade, fez o percurso de um artista».
Fora com a ideologia
O mentor de Alexievich foi um compatriota, o escritor Ales Adamovitch, que desenvolveu um estilo influenciado pela tradição oral russa e que designou de várias maneiras, como «romance coletivo», «romance oratório», «romance testemunhal» e «coro épico». Mas Adamovitch não se coibia de, ganhando balanço nos testemunhos que recolhia, saltar para dissertações tentando programar a realidade como uma peça ideológica.
Na sua obra mais conhecida, sobre o Cerco de Leninegrado, um trabalho em conjunto com o também bielorrusso Daniil Granin, os dois contaram a história daquele período entre 1941 e 1944, uma espécie de história popular do Cerco, mas como explicava Alexievich numa entrevista à revista The New Yorker «nele contam a história de um miúdo e da mãe, que partilham um apartamento com uma mulher que tem o hábito de roubar. O miúdo e a mãe passam fome», e segundo se lembra, o miúdo vive com o dilema de saber que no seu esconderijo a mulher tem meia almôndega e debate-se se há-de ir buscá-la ou não. «E, no meio disto, surgem três páginas com ruminações dos autores sobre a natureza das elites intelectuais russas. Aquilo para que eu estou sempre a alertar é: ‘Não te coloques ao lado da almôndega. Vais perder’».