Fez dezenas de campanhas eleitorais. Como foi fotografar uma ‘campanha de afetos’, sem bandeiras e sem salas com multidões, como foi a de Marcelo Rebelo de Sousa?
É mais difícil fazer boas imagens. Chegava-se a um sítio e não havia autocarros, não havia marcações, bandeiras ou cartazes. Em contrapartida, houve coisas extraordinárias. No penúltimo dia de campanha fomos ao Porto e, no intervalo entre a receção de Rui Moreira ao candidato e uma entrevista ao Porto Canal, Marcelo decide descer a Avenida dos Aliados e eis que é desafiado por um engraxador de sapatos a sentar-se. O professor aceitou e, de repente, estavam 100 pessoas à volta dele. Não estava nada combinado. A campanha foi toda assim.
Mantém uma amizade de 40 anos com Marcelo (trabalharam juntos no Expresso). Ainda assim, a campanha surpreendeu-o?
Ele tinha um plano que foi tornado público em Celorico de Basto, quando apresentou a candidatura. E seguiu esse plano à risca. Quanto à espontaneidade, não foi novidade para mim. Ele é assim.
Será o fotógrafo oficial de Marcelo enquanto Presidente?
Não faço ideia. Se vou, ainda não está decidido. Mas estou convencido de que vai ser muito bom trabalhar com uma pessoa como Marcelo na Presidência.
Cavaco Silva era capaz de fazer uma ‘campanha de afetos’?
Não, de maneira nenhuma. Marcelo é uma pessoa de afetos, que gosta de conviver e que vai ao encontro das pessoas. E não deixa que mandem na vida dele. Na semana passada desabafou, na última aula na Faculdade de Direito, que já se sente um bocadinho prisioneiro porque tem sempre seguranças atrás dele. Além disso, é o político que conheço que respeita mais a função da Comunicação Social.
Há a ideia de que Cavaco mantém um certo afastamento dos jornalistas. Em que medida isso é verdade?
Os jornalistas não gostam de Cavaco e Cavaco não gosta dos jornalistas. Cavaco manteve sempre uma má relação com a imprensa. Mas a culpa era das duas partes, que se batiam por interesses que não convergiam. Não obstante essa dificuldade de relacionamento, acho que Cavaco tentou sempre ser cordial com os jornalistas. Ele às vezes até brincava: ‘Rui, quem manda aqui é o fotógrafo’.
Esteve 10 anos em São Bento como fotógrafo oficial de Cavaco e ainda fez as campanhas para Belém. Havia ‘linhas vermelhas’?
Não, sempre tive total liberdade. Cavaco é introvertido. Não é de tomar iniciativa em termos do social, mas é bem-disposto. Não é nada daquilo que quiseram fazer dele. Pelo menos era assim.
O que quiseram fazer dele?
Cavaco era outra pessoa como primeiro-ministro, entre 1985 e 1995. Quando foi para Presidente, mudou. Não sei se por culpa dele ou se por culpa do grupo de trabalho que o reduziu a uma figura enclausurada num palácio. Acho que Cavaco esteve enclausurado num palácio, não por culpa dele mas por culpa de pessoas que trabalhavam com ele em Belém.
Como fotógrafo do então primeiro-ministro, assistiu a momentos de tensão política e a decisões duras?
Recordo a última visita de Cavaco à Casa Branca. Eu e o fotógrafo oficial de Bill Clinton assistimos ao encontro na Sala Oval. A dada altura, depois dos cumprimentos, vejo que Cavaco está a olhar para mim desconcertado, à espera que eu saísse. Mas como tinha ordem para sair só quando o fotógrafo de Clinton saísse, fiquei. No final, vim a perceber que ele assinara um juramento de confidencialidade. Isso para dizer que em Portugal não há a tradição de um fotógrafo se tornar um confidente.
Mas chegou a ser íntimo de Cavaco. Ele foi ao seu casamento.
Sim. E fui algumas vezes a casa dele. Nas viagens ao estrangeiro – acompanhava-o em todas – o nosso relacionamento acabava por ser um relacionamento mais próximo. Ele contava anedotas.
Era fácil conseguir uma foto de Cavaco sem Maria Cavaco Silva?
Não. Era omnipresente.
Foi fotógrafo oficial de Sá Carneiro, a quem chega através de um amigo. Chegou a militar no PSD?
Não. Do PCP nunca seria. O PPD, depois do 25 de Abril, estava muito à direita. Só fui as umas reuniões do MRPP (levado por colegas do Jornal de Notícias), onde encontrei Durão Barroso. Depois, quando fui para o Expresso, havia a ideia de que os jornalistas eram todos de direita. O único mais à direita era eu, provavelmente. A maioria era de centro-esquerda, como Vicente Jorge Silva, meu amigo, com quem pensei o Público, quando ainda estávamos no Expresso, ou o José Manuel Fernandes e o Nuno Pacheco, que tinham passado pela UDP.
Admite que a afinidade política facilitou a relação com líderes do PSD?
A afinidade política é muito importante. Álvaro Cunhal nunca me convidaria para ser o fotógrafo dele, apesar de ter aceite o meu desafio de o levar para o Jardim do Torel para fazer fotos para uma entrevista ao Expresso. Ele dava-as sempre na mesma sala, pequena, na sede do PCP, quase sem cor e com os mesmos quadros nas paredes. Jaime Gama, meu amigo, sempre que me encontra diz-me que sou o fotógrafo mais educado que ele conhece. Respeito as ideias de cada um. Não sou o fotógrafo da direita: revia-me nas ideias da direita. Mas nunca utilizei uma foto que ridicularizasse quem quer que fosse e a que partido pertencesse. É o off the record transportado para a fotografia.
Tem muitas fotos off the record?
Claro, são fotografias que seriam inconvenientes. Uma coisa é o ridículo, outra coisa é uma foto que retrata determinada situação. Que é crítica. Posso fotografar um político a comer, mas não publico uma foto desse tipo.
Essas fotos nunca serão reveladas?
Vou continuar ‘educado’, mas acho que há fotografias que os leitores já têm o direito de as ver. É como os segredos do Vaticano que ao fim de algum tempo de nojo são revelados. Mas há um princípio essencial: as fotos não devem ferir o bom nome das pessoas.
Mas é um fotógrafo que aprecia o nervo da política, a intriga, e procura dar conta disso nas suas fotos.
Sempre gostei de política. E tive sorte. Comecei num período em que a política fervilhava, os comícios juntavam milhares de pessoas e iam madrugada fora. Esteticamente, era tudo muito importante: toda aquela representação, como se fosse cinema. Interpreto, encaro e vejo a política como uma representação. E depois é preciso ser muito discreto e ter informações. Andar mais ou menos ao lado dos políticos como se fossemos um deles. E ser-se aceite por eles como um factor positivo, mesmo que crítico. E isso fui construindo. Sou amigo de Ramalho Eanes, de Freitas do Amaral ou de Mário Soares, com quem fiz vários trabalhos sabendo ele que eu era fotógrafo de Cavaco Silva.
Reza a história que foi uma fotografia sua, na Marinha Grande, que virou a campanha de Mário Soares nas presidenciais de 1986.
Sim. Diz-se que aquela foto virou completamente uma campanha para a qual Soares partira com apenas 7% das intenções de voto. O voto da esquerda estava disperso. Havia um candidato de cisão, Salgado Zenha, e Maria de Lourdes Pintasilgo. Quando acontece aquele episódio de agressões na Marinha Grande, Mário Soares dá o pulo, consegue ficar à frente de Zenha e vai disputar a segunda volta com Freitas, e este acabaria por perder.
Numa campanha, onde estão vários fotógrafos, como é que foi o único a apanhar a agressão a Soares?
Cobria a campanha para o Expresso e desconfiava que ia haver estalada naquela visita. Não tinha informações, mas havia milhares de desempregados na Marinha Grande. Quando Soares chega, decido ir para o centro da Marinha Grande com meia hora de avanço. Estaciono o carro, a salvo, e caminho em direção a uma multidão em fúria, com bandeiras pretas. Soares, quando chega, avança corajosamente contra eles e vê-se envolvido naquela confusão. Até que começa a ser agredido. Sou o único fotógrafo ao pé dele porque os outros estavam ainda a estacionar os carros. Depois, Soares entrou para uma fábrica. Lá dentro, resolvi pôr a máquina no carro da segurança e saí pela porta. Cá fora, só ouvia: «Havia aqui um fotógrafo. Onde é que ele está?». Não era nada comigo… Depois fui recolher a máquina e o saco ao Hospital de Leiria, para onde foi levado o chefe da segurança de Soares, que estava com a cabeça toda rebentada.
Antes, nas presidenciais de 1980, também esteve perto de um momento histórico: a morte de Sá Carneiro. Porque não chegou a embarcar naquele avião?
Já trabalhava com Sá Carneiro e uns meses antes tinha feito a campanha vencedora da Aliança Democrática (PSD/CDS/PPM). No dia da morte, estive a fotografar a conferência de imprensa do António Capucho, diretor de campanha, e de Sá Carneiro que anunciou que naquela noite o primeiro-ministro voava para o Porto para participar num comício de Soares Carneiro, candidato presidencial apoiado pela AD, que não descolava das sondagens. Disseram-me que não era preciso eu ir, até porque no mesmo dia havia um comício em Setúbal com Soares Carneiro. Acabei por não ir para Setúbal, foi o outro fotógrafo. Quando chego a casa, a RTP diz que caiu um avião onde seguia Sá Carneiro. Vou a correr para Camarate e fotografei aquilo tudo. Eu era para ir nesse avião. Mas escapei.