Mulheres sem César

Um dia as mulheres serão consideradas como seres autónomos, livres e soberanos. 

Não aconteceu até ao século XX e já não creio que venha a acontecer no século XXI. Vai demorar muito mais tempo, até porque, assoberbadas, ameaçadas, acirradas, elas distraem-se, dispersam-se, destroem-se. A si mesmas e às outras.

Não sabem fazer lobby – ou, quando sabem, fazem-no com os que mandam (os homens) contra as próprias mulheres. Contra si mesmas – mas só reparam quando é demasiado tarde.

Os homens espicaçam-nas contra as outras mulheres – e elas deixam. Porque são mais estúpidas do que os homens? Não: porque estão esganadas de fome. Uma côdeazinha de poder. Uma casca de promoção, por miserável que seja, e elas latem atrás do dono. Isto, na feliz civilização ocidental: nas outras, se latem, matam-nas.

Desta forma de violência quotidiana, ninguém fala. Os latidos ofuscam-na. Ou a vergonha.

Vejam All About Eve, o magistral filme de Mankiewicz, de 1950. Não é apenas a história de uma oportunista sonsa que tenta roubar o lugar a uma grande atriz. Nem apenas a História Universal da Inveja. É a análise científica das causas da opressão das mulheres. A história da vida da maioria dos seres do sexo feminino – as que se dedicam ao infame papel de Eve e as que se deixam enganar pela lisonja, pela carência afetiva ou por excesso de fé na natureza humana.

Nas histórias de poder masculino há sempre o amparo das lealdades inabaláveis. Nas histórias das mulheres, as lealdades são sussurradas, mas a cobardia acaba por vencer, cavalgando ao pôr-do-sol, discretamente, para bem longe da vista.

As mulheres são educadas para terem vergonha de tudo o que fazem e não fazem. Para pedirem desculpa de serem.

Nos tribunais públicos ou privados, chamam-nas à pedra com a ignóbil frase sobre a mulher de César (à qual não basta ser honesta, tem de parecê-lo).

Estão habituadas a ser apontadas a dedo: o decote, a competência, o tom de voz, as palavras, tudo nelas está a mais ou a menos – em geral, a mais, ou não fosse este um país-miniatura.

Desde a infância que me instigam a falar baixinho, e sobretudo a rir baixinho. A substituir a afirmação pela sugestão, e a usar mais as lágrimas do que a expressão do pensamento.

Vejo que os homens dizem naturalmente «discordo» uns aos outros, e que a mim me dizem «fico muito triste com a sua opinião», em vez de me explicarem as causas da discórdia.

Gostava que a celebração do Dia da Mulher fosse um festejo histórico, apenas uma questão de memória e homenagem, como o Dia da Restauração da Independência. Desgraçadamente, o que se celebra é ainda um projeto de futuro.

A designação Dia Internacional da Mulher é, em si mesma, paternalista e estúpida (todo o paternalismo é um disfarce fruste da estupidez).

Não há ‘a Mulher’ como uma espécie de essência uniformizada; quando se fala de Direitos do Homem, a palavra homem significa a humanidade na sua ampla paleta de diferenças; ‘a Mulher’ é apenas um estereótipo a que se aplicam rótulos e palavras específicas. ‘Reputação’ é uma delas: se por cada vez que uma alma me disse «vê lá a tua reputação» eu tivesse ganho um euro, o Américo Amorim seria um rapaz pobre comparado comigo. Nunca vi nenhum moço de qualquer idade ser acarinhado com esse conselho.

Um dia, estava com Agustina Bessa-Luís quando alguém disse que fulana devia pensar no que a atitude X poderia fazer «à sua reputação». Retorquiu a grande Agustina, com um ar entediado: «Essa conversa de reputação só serve a mulherzinhas que não tenham nada com que se entreter» – o que teve particular graça porque a interlocutora era, ela mesma… mulher.

O machismo repercute-se e amplia-se na voz das suas incautas vítimas. De cada vez que uma mulher repete «eu não sou feminista, sou feminina», uma outra mulher é espancada violentamente. É aquela história do bater das asas da borboleta que ergue a aragem, desassossega os elementos e provoca um tufão noutra parte do mundo.

De cada vez que um homem diz que não pode ser feminista, porque é homem, deveria ter um grilo falante que lhe moesse os tímpanos com a seguinte pergunta: «Então também não podes ser anti-racista porque não és negro/branco/amarelo/etc, grande animal?».

Mas os grilos falantes emigraram, zonzos com a depenagem ética de um país que se habituou a leis retroativas e seletivas – ou seja, ao pânico da norma em eterno movimento, que caracteriza, na sua arbitrariedade incontrolável, o totalitarismo. É nisto que estamos. 

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