A pátria da literatura

Nos subterrâneos da complicadíssima política, germina uma polémica tempestuosa em torno da literatura de expressão portuguesa.

Uso propositadamente o singular, sabendo que até isso parece controverso, porque entendo a língua como o ADN essencial de uma expressão literária; delimitar estilos ou tipologias literárias por fronteiras geográficas parece-me redutor e, em última análise, colonialista.

Machado de Assis tem muito mais afinidades com Eça de Queiroz do que com Guimarães Rosa, por exemplo – e para ficarmos no terreno relativamente sossegado dos mortos grandiosos.

A língua é a matéria de que somos feitos, a nossa carne; sempre que um escritor muda de língua (muitos o têm feito, por terem mudado de pátria, voluntariamente ou à força) altera, não só o seu estilo, mas a sua visão do mundo e a sua identidade, tenha ou não consciência disso.

Jorge de Sena ou o esquecidíssimo – e notável – José Rodrigues Miguéis emigraram para os Estados Unidos da América sem deixarem de ser – antes pelo contrário – potentíssimos escritores da língua portuguesa, porque ela continuou a ser o seu território de expressão.

Sucede que o Ministério da Educação do Brasil considera agora excluir a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa do seu sistema de ensino.

Esta proposta tem sido publicamente contestada por académicos e escritores brasileiros além de, evidentemente, inúmeros portugueses.

O problema é que, do lado português, a argumentação roça demasiadas vezes o primarismo do ex-colonizador: “Quem se julgam eles? Quem lhes deu a língua?”. Indignações confrangedoras de quem nem Camões terá lido decentemente, quanto mais o Padre António Vieira (que os brasileiros muito justamente consideram um dos fundadores da sua literatura, já que viveu a maior parte da sua vida no Brasil, onde aliás morreu) ou Carlos Drummond de Andrade.

Estas arrogâncias de proprietários e servos nunca servem nada que se aparente a pensamento ou justiça; são o politicamente correto invertido.

Há uns anos fiz um circuito por universidades norte-americanas para falar do Padre António Vieira – e uma das conferências previstas numa dessas universidades foi cancelada por se entender que não ficava bem homenagear um “esclavagista”. Assim vai o mundo, aprendendo pouco e devagar.        

Retirar os grandes escritores portugueses do ensino brasileiro prejudica os estudantes –  tal como a total ausência dos grandes autores da literatura brasileira no sistema escolar português tem prejudicado, e muito, os estudantes portugueses.

Pessoalmente, tenho uma dívida de gratidão imensa a Erico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, escritores que li no início da adolescência, através da generosidade de um primo do meu pai chamado António Maximino, um homem que, sendo engenheiro, era – e é – um apaixonado pela literatura, e me ofereceu livros desses escritores.

Ter lido Clarissa, de Veríssimo, ou os poemas de Drummond, entre os 10 e os 12 anos de idade, foi descobrir um mundo novo, uma língua nova, límpida, luminosa, dentro da minha própria língua. Não seria a mesma coisa tê-los lido aos 20 ou 30 anos de idade, quando o que somos já está formado (e sempre, de algum modo, deformado).

Um dos meus desgostos é só ter conhecido Clarice Lispector quando, no Brasil, os jornalistas me começaram a perguntar se eu tinha sido influenciada por ela: sim, deveria ter podido absorver mais cedo esta avassaladora obra.

Vítor Aguiar e Silva propôs recentemente a criação de um cânone literário lusófono para o ensino escolar em todos os países de língua portuguesa.

Diante dessa ideia – cintilante, fundamental – a máquina gaguejante e poderosíssima das burocracias e dos interesses começa a mover-se, atarantada: quantos de Angola? Quantos da Guiné? Quantos de Timor? E quantos dessa vergonha internacional da CPLP que é a Guiné Equatorial? E é acompanhada à viola pelo coro mesquinho do anti-cânone, no seu sussurro pretensamente igualitário, que tem como objetivo último arrasar esse incómodo que é o génio individual.

É verdade que a História patriarcal e colonial escondeu e matou o talento das mulheres e impediu a educação e o desenvolvimento literário dos negros; mas não é verdade que João Cabral de Melo Neto tenha o mesmo valor que o senhor Neto da mercearia que faz rimas sobre os clientes que pedem fiado. 

A língua e a literatura não podem vergar-se à rasteirice politiqueira.

É urgente que se estabeleça e defenda um cânone escolar que abra a todas as crianças e jovens do mundo da língua portuguesa o universo riquíssimo da literatura que esta língua tem vindo a gerar, desde há muitos séculos, em todas as partes do mundo que foi tocando, e pelas quais se deixou tocar.