1) Foi apenas a confirmação de um facto já consumado. O Presidente – fosse Marcelo, fosse outro o titular do cargo – teria forçosamente de promulgar o Orçamento de Estado: os portugueses estão praticamente no mês de Abril e ainda reinava o clima de incerteza sobre as regras orçamentais em vigor. Não seria mais sustentável viver em regime de duodécimos, prolongando a vigência do Orçamento de 2015, ainda da autoria de Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Uma eventual decisão de veto ou de ameaça de declaração de inconstitucionalidade sobre normas fundamentais do Orçamento apresentado por António Costa teriam consequências inusitadas: os portugueses poderiam ser confrontados com a clarificação política e/ou jurídica do Orçamento de 2016 já, praticamente, em…2017. A promulgação do Orçamento corresponde, assim, à oficialização de um facto já praticamente consumado;
2) Marcelo-Presidente conserva, ainda, os traços essenciais do Marcelo-comentador. Na sua comunicação ao país, Marcelo vestiu o fato do “Presidente descomplicador”, isto é, do titular do cargo que toma as suas decisões, que atua politicamente, que é um ator político direto e relevante no nosso sistema político – mas que, ao mesmo tempo, analisa e explica aos portugueses o que está em causa na sua decisão e o processo que o conduziu a essa mesma decisão. O que é curioso é que Marcelo analisa as suas próprias decisões como analisava as de Cavaco Silva – por momentos julgámos que Cavaco Silva ainda era Presidente de Portugal e que Judite de Sousa ainda iria entrar de rompante na sala do Palácio de Belém, sentando-se na escrivaninha ao lado ou em frente a Marcelo Rebelo de Sousa;
3) Quanto à substância – embora em tom muito analítico dando a aparência de suavidade na análise ou de tolerância para com as opções orçamentais apresentadas – esta foi mais surpreendente: Marcelo Rebelo de Sousa arrasou o Orçamento de António Costa. Ao contrário do que muitos julgavam – até pelos galões de social-democrata que Marcelo faz questão de puxar, insinuando-se uma maior proximidade ideológica entre o Presidente e António Costa do que com Pedro Passos Coelho – , Marcelo distanciou-se das opções do Governo da geringonça, enumerando os vários perigos que encerra e não tecendo um único comentário de elogio ou sequer compreensão. Pelo contrário, Marcelo Rebelo de Sousa – pese embora de forma redonda – qualificou o Orçamento de Estado do presente ano como aventureiro e arriscado, dependendo o seu sucesso de uma execução orçamental muito rigorosa e estrita por parte do Governo e da Administração Pública em geral. O que significa que Marcelo Rebelo de Sousa sabe que o Orçamento vai correr mal e que medidas adicionais de restrição orçamental serão necessárias a breve trecho;
4 )Do ponto anterior resulta que, pela primeira vez, um Presidente da República desvaloriza a importância do Orçamento de Estado como ato político e legislativo – remetendo o essencial para a fase administrativa de execução. Marcelo ofereceu a si mesmo dois problemas delicados para o futuro: 1) aplicando este critério de desvalorização do Orçamento e sobrevalorização da execução orçamental (fase administrativa da vida financeira nacional), o Presidente da República fica de “mãos atadas” para vetar futuros Orçamentos de Estado: poder-se-á dizer sempre que o sucesso do Orçamento dependerá da execução orçamental, superando-se, desta forma, todas as objeções políticas que o Presidente possa ter; 2) o poder de promulgação ou de veto do Orçamento de Estado, bem como das demais leis de execução das opções político-financeiras aí contidas, é o único meio de intervenção do Presidente da República na gestão dos dinheiros públicos. Ora, se o Presidente assume que a fase que releva é a fase de execução orçamental acaba por limitar e diminuir os seus poderes – o Presidente não intervém na execução orçamental, ficando dependente do sucesso ou insucesso da Administração Pública, incluindo o seu órgão superior que é o Governo;
5) O que pode significar duas coisas: 1) Marcelo Rebelo de Sousa pode estar a pensar intervir regularmente na esfera própria do Governo, fiscalizando detalhadamente a execução do Orçamento, assumindo a postura de um “Super-Primeiro-Ministro”, conferindo ao nosso sistema de Governo um cunho presidencialista, explorando as fragilidades da atual maioria governativa; 2) Marcelo Rebelo de Sousa sabe perfeitamente os erros, omissões e sinais negativas que o Orçamento de Estado comporta; já conhece o chamado “Plano B” que António Costa apresentará em Bruxelas, teme as consequências do falhanço orçamental anunciado – logo, quer desresponsabilizar-se do insucesso do Governo socialista/comunista, afirmando, desde já, que tudo resulta da execução orçamental da responsabilidade exclusiva do Governo. Ou seja, se o Orçamento provar bem, o êxito é de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa; se o Orçamento provar mal, a culpa é de António Costa. Apenas: só Costa poderia ter controlado e garantido o sucesso da execução orçamental.
Em suma, ontem, tivemos o melhor do Marcelo- comentador com o melhor do Marcelo-ator político. Com laivos simultâneos de brilhantismo na análise política – e de genialidade estratégica (maquiavelismo?) na ação política. António Costa já viu que a sua amizade com o Presidente Marcelo não é pura, nem é sincera – o que o acantona ainda mais à esquerda…O PS já diz que Jerónimo de Sousa é mais confiável do que Marcelo Rebelo de Sousa…